Nos anos de chumbo

                                   (...há mais de 48 anos!)

   Para Saint´Exupéry, "antes de escrever, é preciso viver." Muito bem. Aqui estão três pequenas histórias que testemunhei, vivenciei e nunca mais esqueci. E olhe que já são passados mais de quarenta e oito anos, desde que tudo ocorreu.

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   O Brasil atravessava os tenebrosos "anos de chumbo", portanto, idos de 1964. O tempo era de total intolerância política. Até prova em contrário, éramos todos - principalmente nós jornalistas - subversivos; perigosos comunistas.
   Nos jornais e rádios, censurava-se tudo. Nem os obituários, as colunas sociais e os reclames comerciais eram poupados pelos censores do maldito regime militar reinante.

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   Mas os bons e destemidos jornalistas encontravam sempre uma brechinha para, aproveitando-se da inocência dos censores, soltar notícias ou textos gozando os "donos" do poder, filhotes fieis da chamada Revolução de 31 de março, que derrubou o Presidente João Belchior Marques Goulart.

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   Certa ocasião, e aqui vai a primeira história, indignado com a presença permanente e desconfortável de um determinado censor fardado na redação, o editorialista de um desaparecido jornal baiano, no qual eu trabalhava, escreveu um minúsculo e belo artigo falando sobre as borboletas.
   Submetido o artigo ao tenente de plantão - um oficial R2 palavroso, mas muito legal -, o texto foi por ele aprovado, chamado  o seu autor de "um jornalista do mais alto nível".
   Não observara o ilustre militar, que as primeiras letras de alguns parágrafos do elogiado texto, unidas, formavam a seguinte frase: "O censor é burro!"
   O articulista sobreviveu a ditadura. Está vivo e sendo consultado, como um historiador digno do maior respeito. Não lhe cito o nome porque não tenho autorização para fazê-lo.

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   O Presidente Humberto de Alencar Castelo Branco realizava sua primeira visita a Salvador, e, na ocasião eu chefiava o Departamento de notícias de uma emissora baiana. A ordem da direção era  a de dar total e irrestrita cobertura à passagem do comandante supremo do golpe que derrubara o Presidente Jango.
   Apesar dos esforços do seu proprietário, sua emissora não dispunha de bons equipamentos para fazer a cobertura de um evento político de tamanha envergadura e responsabilidade.
   Cumprindo ordens, mandei para a rua o fusquinha  da reportagem com a modesta aparelhagem que a rádio naquele momento possuía.
   Foi um sufoco! Era um tal de "Alô! Alô!... câmbio, câmbio!" e pouca cobertura. E o Presidente pra lá e pra cá, arrodeado de puxa-sacos. 
   Salvou a emissora das consequências que poderiam advir da péssima cobertura um coronel do Exército posto na direção da emissora, numa jogada inteligente, cautelosa e oportuna do seu dono. 
   Senão, nem sei o que teria acontecido aos radialistas que, de repente, poderiam até ser chamados de sabotadores.
   O coronel, gente muito boa, já morreu. A ele, nós, protagonistas desse episódio, seremos eternamente gratos. 

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   Trabalhava na mesma emissora uma rezoável mas muito dedicada jornalista chamada.... Com outros colegas de redação ela redigia um noticiário que ia ao ar de hora-em-hora.
   Perto do carnaval, inadivertidamente, claro, a esforçada jornalista botou na boca do locutor a seguinte notícia: "E atenção! O bloco carnavalesco X sai hoje à tarde do Quartel Y, para uma apresentação na rua H!"
   Foi um deus-nos-acuda.  Por pouco a ingênua colega não foi chamada a "participar" de um IPM, muito em moda nos "anos de chumbo". Aquele coronel, sensato, conclui que tudo não passara de "um lamentável equívoco da redatora". 

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   Mandei um repórter entrevistar o General Comandante da Região. Ao ser escalado, ele entrou em pânico. Trêmulo, foi à casa do oficial portando um modesto gravador.
   Durante mais de uma hora, ouviu o Três Estrelas que, ao final, pormeteu escutar sua entrevista, quando a rádio a colocasse no ar.
   Na redação, constatei que o repórter, um rapaz humilde e tímido, não havia gravado o pronunciamento do General. Um defeito no gravador e ele não percebera em tempo hábil. A rádio, o radialista e eu, trememos na base. E agora? Como justificar o fiasco?
   O Comandante, depois de um investigação sumária, perdoou o repórter, e lhe deu nova entrevista. Sem deixar de lhe fazer severa advertência. Esse repórter morreu cedo.

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   Vejam os amigos, mormente os mais novos, que, durante os "anos de chumbo", não era fácil fazer jornalismo. Um pequeno equívoco na veiculação de uma notícia podia resultar no fechamento do jornal, da rádio, e na punição do jornalista ou radialista que a divulgara. 
    Publico estas três histórias para que o tempo não as condene ao esquecimento.
    Elas contam momentos negros da vida política desse velho Brasil, que tem um povo muito bom, mas de memória muito curta.   
   
 
   


    

    
Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 13/10/2012
Reeditado em 16/10/2012
Código do texto: T3930842
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