MEU ANIVERSÁRIO, AINDA

Longa crônica escrita em 11 de outubro de 2001, há 11 anos, portanto; revista, com reescritas e adendos, no dia 10 de outubro de 2012. Ficou agora bem mais longa rsrsrs. Haja paciência para lê-la; espero que alguns (ao menos um) de vocês a tenha, paciência. Escrevi os adendos há menos de três dias, como se fora para ir a um confessionário. É isso, caríssimos.

Estamos na primavera. Qualquer pessoa que abra a janela nestes dias ou passeie pelas alamedas de um parque vai julgar que a afirmação "estamos na primavera" é redundância perfeitamente inútil, já que a realidade absorvida pelos olhos e pelo olfato prescinde de qualquer autenticação pela escrita. Assim, a primavera torna-se algo inquestionável, ainda quando o sol esteja muitíssimo pálido ou completamente oculto por nuvens de chumbo, ou se estiver caindo, persistente e impertinente sobre nossas cabeças, aquela chuvinha de outono, enlameando o chão e a sola dos sapatos... ou se...e uma infinidade de "ses" poderiam ir preenchendo o branco do papel, com o objetivo de empanar o brilho da primavera em questão; no entanto, nenhum deles seria capaz de colocar em xeque o fato de que, para a totalidade dos habitantes do hemisfério sul é primavera, tanto quanto é perfeita a resposta da criança sobre os porquês deste fato: PORQUE SIM. As pessoas não se dão conta de que, ao abrirem a janela para o dia cinzento, ou ao afundarem os sapatos na lama em um dia de outubro no hemisfério sul, já ao pensada, a frase "estamos na primavera" tem o poder de lhes assegurar que se encontram e que nos encontramos todos na referida estação, porque somos seres de linguagem: nenhuma planta, flor, animal precisa de linguagem que dê nome às coisas, só nós, seres humanos, milionários-indigentes, exatamente por causa dessa coisa chamada linguagem, privilégio-danação.

No que me concerne, necessito conscientemente afirmar-me e reafirmar-me que estamos na primavera para, não apenas crer e duvidar de tal fato em tempo integral, como também para manter diante de mim mesma a tal linguagem, essa que me alimenta do real possível, como o beija-flor na flor, como o beija-flor que, para o meu mal, jamais poderei ser.

No dia de hoje, particularmente, a questão de a primavera ser ou não ser me perturba, desde as primeiras luzes da manhã, talvez porque, neste dia de outubro no hemisfério sul (sobre cujo fracasso os especialistas se debruçam em explicações sem fim) nasci eu, há tantos anos. O fato de eu ter nascido aqui, em um 11 de outubro há tantos anos, não alterou nem altera o globo do mundo senão em mais um grão de areia. Esta falta global de importância não se estende até a mim, é claro: eu me considero a criatura mais importante do mundo, porque sem mim o mundo não existiria. Antes que todos se escandalizem para além de todos os limites, deixem-me completar o pensamento: sem mim, o mundo não existiria em mim. Agora, não me considerem a campeã mundial da modéstia por assim tirar, de mim, toda e qualquer importância.

Perfeitamente inútil e quase indispensável (para minha mãe, com certeza o sou, indispensável) nasci, num antigo dia de primavera, em outubro, 11. Por isso, em cada ano, neste dia, preciso me convencer de que estou mesmo na estação que precede as demais estações (ora, toda estação precede outra, cara Zuleika). Para isso é preciso que eu teça ao meu redor o simulacro mais plausível do beija-flor que jamais poderei virei a ser.

Saio por aí com a máquina fotográfica em punho, à caça de flores. Caço em lugares óbvios como alamedas, árvores avulsas, anônimos jardins; em gretas e buracos do asfalto, como o fez Drummond com sucesso. A despeito das inversões e perversões climáticas elas, as flores, mais teimosas que a espécie homo sapiens, continuam sobrevivendo aos milhares, aos milhões, aos bilhões, aos trilhões... espalhadas pelo mundo, algumas nos lugares mais inóspitos, (como as edelweiss) ainda que, para minhas capacidades primárias de percepções, só se apresentem as imediatamente próximas, uma a uma, cada qual com seu nome e cara própria, como as pessoas que conheço. Transformado em Princípio, isto pode se tornar uma frase perigosa como: "Não há flores mais lindas do que as de minha Pátria, estrangeiro".

Fotografar é um processo interessante: de um lado está a flor, do outro estou eu, e entre nós a máquina, que não toma partido. Tenho por objetivo retratar a primavera através da flor, que fica ali quieta, tão quieta como nenhum modelo humano seria capaz de ficar, a não ser que sopre vento ou brisa inesperada. A máquina obedece ao comando do meu dedo. No caso da presença de vento, a flor será registrada sem algumas de suas pétalas inicialmente vistas. Sob a ação da brisa, as pétalas apresentarão um quase imperceptível deslocamento do próprio eixo. Em ambos os casos abre-se uma fissura entre a primavera (flor) e o seu registro (foto). A bem da verdade, faz-se imperativo identificar esta última afirmação como falácia, na medida em que a primavera, não podendo ser representada por flor de plástico recebe, desde a raiz, o impulso para a transformação. Também sendo o vento e a brisa partes do processo, não constituem, um nem outro, agentes da fissura entre a primavera e a sua imagem.

Se eu tivesse nas mãos uma daquelas máquinas que precisam os movimentos do botão a flor adulta, pétala por pétala, num crescendo mínimo e constante, desapareceria toda e qualquer fissura entre ela, primavera e o registro dela?

Nós refletidas no olho da câmera

pressiono o botão

num átimo

primavera

ilusão de ser Deus.

Escrita original entre 11 e 14 de outubro de 2001.

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Pós-escrito na tarde e noitinha de 10 de outubro de 2012: Este texto é do tempo em que minhas pernas e uma vida muito diversa da atual ainda me permitiam sair por aí à procura de flores, com minha máquina fotográfica não digital. Enfim, pelo menos, o texto restou.

Seja como for, amanhã, 11 anos depois será, novamente, mais uma vez, como em todos os anos, dia do meu aniversário e eu agradeço, fundo, por sua paciência e por sua presença, amigos. Toda vez que um de vocês me lê (e/ou me ouve), mesmo quando não comenta o texto lido (e/ou o áudio ouvido) eu recebo um testemunho vivo da minha própria existência. Sem metáforas. Por isso, sempre e sempre, a todos e a cada um, o meu mais sincero agradecimento.

Pós-escrito ao pós-escrito: As coisas que acabo de escrever não são exatamente gesto de auto piedade nem tampouco ato de resignação estoica, mas, algo de intermédio, à semelhança do verso de Mário de Sá-Carneiro que diz ser ele, poeta, “pilar da ponte do tédio...” Não a ponte, o pilar dela, da ponte. Obrigada, Poeta amado e suicida, à diferença de mim que, embora nem sempre pareça, amo a vida porque, com todos os meus fundos limites físicos, emocionais, existenciais, com toda a minha falta de liberdade para escolher, também, outros seres e metas aos quais servir (e, como eu, milhões e milhões e milhões de seres...) continuo a amar, a tentar compreender e a tentar aceitar as pessoas, com suas diversidades que são múltiplas e (desde que não causem mal a outrem) todas perfeitamente válidas, com o mais pleno direito a existência. Cada um com sua circunstância, com sua dor, com seus impasses, com seu(s) amor (es), com os seus diferentes modos de amar.

Admito que, em verdade, não ando muito paciente com os demasiado próximos, nem eles comigo, o que geralmente acaba por ocorrer, entre outras causas, pela impossibilidade, por anos e anos a fio, de se tirar, ao menos alguns dias de “férias conjugais”. Tal impossibilidade de férias nos torna até mesmo injustos, incompreensivelmente injustos, muitas vezes até sem perdão injustos com os demasiado próximos (talvez, principalmente, com que os que achamos que deveriam, até por dever, estarem mais próximos.) Mea culpa... Mea culpa... Enfim, como diz ex-companheiro por muitos anos e meu sempre amigo: “Tudo é vida”. Tudo é vida, mesmo, ainda quando ela, vida, esteja em grande falta conosco ou, melhor dizendo, nós em grande falta com ela, vida. De todo modo, para tudo tem conserto, ou concerto rsrsrs. (essa é só para os amantes de música clássica rsrsrsrs... de novo).

Obrigada, meus caros amigos, mais uma vez. Por tudo. Por tudo, MESMO.

Observação Final: Pós- escrito de pós- escrito tão longo que a ele bem pode caber o dito: “Pior a emenda que o soneto”. Não, a ligação que acabo de fazer não tem fundamento. É bom que eu pare por aqui que, por viver quase o tempo todo calada, quando me ponho a falar pareço a boneca Emília, do Lobato, a boneca muda depois de engolir a pílula falante: só com mordaça ela para de falar rsrsrsrs.

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Pós-tudo, em 12 de outubro: amigos, perdoem as ironias, elas são apenas, como já afirmei em outro texto, auto ironias, um modo razoável, como outros, de se dar suporte e também de se suportar certos tempos e certos de sempre contra-tempos, bem como novos contratempos da chamada “vida real”. Abraço de infinito carinho a todos. Este ano vocês “criaram” o meu aniversário, literalmente, junto com mais algumas pouquíssimas pessoas da, repetindo, “vida real”. Vários de meus seres queridos não puderam dar-me bons votos, nem por telefone, sequer por e-mail, por estarem a viver tempos verdadeiramente cruciais, efetivas via-crucis de natureza pessoal, e eu quero dizer a esses amigos que compreendo tudo e sei que, mesmo em silêncio, continuamos a ser importantes uns para os outros. Agradeço fundo aos que, mesmo a viver também tempos tais, se fizeram presença, por telefone, por e-mail. CURVO-ME E AGRADEÇO porque, sendo eu uma romântica incurável, e também por saber da importância dos rituais - aniversário é ritual – sempre é preciso agradecer e, de modo muito intenso pois, neste ano, como já lhes disse e repito, vocês, amigos do Recanto, construíram o efetivo ritual do meu aniversário. Abraço fundo, fundo, a todos.

Ainda em 12 de outubro de 2012.