Porto Diego

Macapá, 12 de outubro de 2012.

Diego, a criança. Foi da conversa com um passageiro que ouvi o caso. Íamos de Gurupá a Santana no barco Darcy Júnior, cheio de redes que nos empurrara para a proa superior da embarcação e que sem querer virou plateia naquela tarde para pequeninos, senhoras de idade e jovens sobre as histórias e estórias daquele grande estuário, de um lado Afuá, de outro Breves, lá na frente Mazagão e de águas gurupaenses.

Disse o homem que a família ia passar festa lá na ilha da Roberta, divisa entre Gurupá e Breves, no motor oitenta a deslizar naquela noite com lua saindo e já assanhando ser espelhada no Amazonas. Eram umas sete horas. Diego, o menino de quatro anos pulava qual um macaquinho do colo da mãe para a perna do pai pilotando, para o lado das irmãs juvenis na frente do barco que mexiam no cabelo, para os tios sentados na parte traseira que contavam confissões de adultos. Todos pediam para que Diego ficasse quieto, porém, tratava-se de um menino ensaboado. Estava tedioso de espaço tão apertado, logo ele que costuma ficar se pendurando nas cordas que esperam as redes de sua casa. Logo Diego, que sozinho imitava o amanhecer dos periquitos em sua algazarra nas primeiras horas da manhã e que quando saía deixava a casinha triste, ciumenta de outras casas que o teriam pulando em suas tábuas mesmo por alguns instantes. Menino que parecia mais peixe, mais boto, mais lontra, mais vivo.

Na chegada da festa, o pai orientou que a família procurasse seus pertences porque iria atracar um pouco mais afastado para fugir do óleo diesel das outras embarcações e assim providenciar um banho mais higiênico para que pudessem ficar cheirosos no evento. O movimento de todos pelas roupas e toalhas foi prontamente atendido, os homens a tomar banho na frente, as mulheres na popa, sentadas a juntar água na lata e banharem-se todas juntas as três mulheres para proteção dos olhares. O pai chamou Diego para ver as outras crianças já no porto recém-inaugurado, no intervalo de cada mergulho para a retirada do sabão:

- Diego!

A mãe chamou pelo menino para esfregar-lhe o pescoço sempre sujo pelo suor de sua peraltice:

- Diego!

Sem resposta ao pai.

Sem resposta à mãe.

As meninas gritaram:

- Diego!

Os tios gritaram:

- Diego!

E nada.

Cadê a criança? Cadê o menino? Meu Deus! O menininho da mãe tão pequenino e da parte inteira do coração dela que a mataria! Cadê seu bebê?! Onde tá o príncipe do pai que prometeu que o mundo seria dele?! Procura meninas por todos os lados Dona Explicação para dizer onde estaria Diego! Corre tios, olhem para cada pedaço de madeira do barco para ver se o guri não estaria escondido!! Gritem o nome do pequeno para Deus, na esperança que ele apontasse o dedo para a criança sorridente e que tudo não passasse de mais uma peça do bacurizinho a testar a sanidade da gente!!

Diego!

A gritaria desesperada chamou a atenção das pessoas que já estavam na festa. Os outros adultos vieram ver o motivo da agonia e escutaram do pai seu clamor, da mãe não se entendia nada de seus berros, de uma das filhas notava-se o silêncio choroso de uma reza instintiva pelo irmão, a frieza dos tios que já montavam as estratégias de procura. A solidariedade sempre de outros pais, as mulheres a confortar, os homens a jurar não desistir na busca. E todos saíram em suas montarias para o rio Amazonas, pois provavelmente o menino caíra na água e tinha afogado.

As equipes refizeram o percurso da embarcação, calculando a hora de chegada e a última vez que perceberam o menino pedindo à mãe que queria subir na tolda do barco para ficar com um dos tios que lá de cima, de costas, não ouvira nem o pedido, nem a tentativa de Diego subir para quietar-se junto a ele.

Parte dos homens seguiu maré adiante, no entendimento que o afogamento seria o inevitável e na tese que o corpo do menino já poderia seguir segundo a correnteza, primeiro afunda-se, depois se emerge não vivo, calmamente levado pelo Grande Rio até lugares que para mim e para você são segredo, em uma baía que junta os rios da vida da gente para esperarmos em enchentes e vazantes o momento de nosso julgamento, talvez uma nova oportunidade para existir, quem sabe ser um igarapé, um lago, um rio gigantesco a depender de nossos merecimentos. Mas tudo isso é segredo.

O fato que a procura de Diego mobilizou muita gente. Na medida em que procissão fluvial girava e girava, rodava o relógio a diminuir as esperanças de encontrarem o garoto. O pai tinha a mente e os olhos nublados de choro que não o ajudavam na busca. E assim os socorristas meteram a mão no aturiá, olharam pelas frestas das aningas, enganaram-se a cada mergulho de tracajás dos paus nas margens. Ao longe enxergavam as velas em reza das mulheres pedindo a Providência Divina. Entretanto, contando-se dez horas da noite ficava difícil demonstrar otimismo.

Por volta das onze horas, chegou à comunidade um camarada de um igarapé próximo trazendo além da mulher, um pequenino todo agitado, puxando conversa com os dois, contando vantagem que o pai dele e os tios eram muito bons de bola. Era Diego.

No trapiche, a mãe reconheceu a cria e correu ao seu encontro, abraçando-o e gritando, tão forte quanto no dia que o pariu, na mesma intensidade e felicidade. Todos correram para ver o menino salvo, que noção pouca tinha que fora salvo. Rojões foram disparados para avisar aos homens nos barcos lá fora do fim daquele sinistro, iluminando a noite, agora sim aliviada.

A irmã mais velha, a mais racional, indagou de forma cuidadosa o que tinha acontecido com Diego, sem responder ainda porque realmente ficara assustado com aqueles gritos de alegria.

- Eu caí do barco – disse todo desconfiado.

Contou que tentou percorrer o lado da embarcação para chegar junto ao tio que estava de costas para ele sentado na tolda, na peripécia de tentar apoiar-se na corda que segurava o pneu de atraque, quando escorregou e caiu no rio. O homem que o achou disse que Diego estava em cima de um barranco de mururé chamando por ele naquela vozinha de “Ei! Ei”. Pensou junto com a mulher que era visagem. Era só um garotinho.

- Ficaste com muito medo? Coitadinho – teve dó a mais nova das irmãs.

- Não. Eu tava brincando com os meninos.

- Que meninos??

- Os meninos da água – e apontou para o imenso rio Amazonas como se soubesse onde estariam naquele exato momento seus parceiros de brincadeira.

Este relato assombrou a localidade. De tudo que se tinha escutado, o fato era que tinham achado a criança no meio do mururezal perdido no rio. Concluíram que criança atrai anjos e o inexplicável aconteceu. Outros falam que os mesmos empurraram o menino para as plantas flutuantes. Outros dizem que botos costumam fazer isso. Várias tentativas que aumentaram a magia do caso. O dono da festa e da sede que não tinha ainda nome para o porto construído, não teve dúvida em batizar o local, agora famoso.

Porto Diego.