No interior das coisas

Em um desses domingos em que nos sentimos fadigados em nossas casas, resolvi sair. Era um domingo amarelo pálido. Havia sol até demais, porém, não apagava a sua palidez, muito ainda a tornava mais evidente. Não suportei ficar mais em casa. As pessoas pareciam estar “entocadas” em suas casas, não havia ninguém nas ruas e é bem verdade que poucas ruas existiam. As janelas fechadas como se todos adormecessem diante dos televisores ligados, paralisados a ver aqueles programas de domingo à tarde. Para falar a verdade os domingos são bem mais longos que outros dias. O cidadão sai de casa, conversa com os amigos, lê, ouve música, assiste, etc. E é plenamente previsível o “etc” dos dias de domingo, que ao contrário do sábado, que é o dia do descanso, o domingo é mais entristecedor, é o prenúncio da rotina de uma nova semana.

Por mais que se goste das semanas, chegará um momento em que elas serão repetitivas e chatas, e alguém reclamará. É própria do ser humano, a reclamação: se chove, reclamam as donas de casa que “as roupas não secam”, se faz sol, reclamam as moças “que a pele queima”. E nas cidades do interior todos reclamam da poeira, a poeira que levanta com qualquer sopro de vento. Toda poeira levanta no interior. Todos sabem de tudo. As notícias voam como a poeira, por isso não há jornais. Se existisse, seria um único jornal, onde os cidadãos olhariam as fotos, leriam os títulos das notícias e diriam: “ihh, essa eu já sabia!”. Logo o jornal estaria na cesta de lixo ou jogado na primeira esquina. Depois de jogado, o jornal se tornaria a notícia. Diriam que “fulano jogou o jornal porque leu a parte que falava sobre ele”. O jornal causaria intrigas e não teria muita utilidade.

As cidadezinhas onde todos se conhecem, onde todos são parentes, amigos, conhecidos ou parentes de amigos, conhecidos e parentes dos vizinhos. Cidadezinhas meigas e traiçoeiras, mas que guardam histórias, próprias de sua essência. Afinal onde mais alguém conseguiria chegar a um endereço sem placas, sem endereços corretiinhos? No interior você chega. Pergunta ao primeiro que encontrar na praça (a primeira e única praça visível ao adentrar a cidade), ele descreverá desde o simples endereço que você está a procura, até a cor das roupas que o morador costuma usar e sua personalidade. É isso mesmo você nunca terá uma mera descrição de nome de rua e número da casa, você receberá um endereço completo, com descrição detalhada de cor, tipo de casa e a melhor de todas as descrições: “o apontar de dedo”, seguido de um “fica ali, naquela casa”. Exatamente o que você procurava está ali diante do dedo indicador de uma pessoa. Pelo caminho mais difícil você caminha um pouco mais e pergunta para umas duas pessoas, mas não há nada melhor pra se ouvir quando estamos a procura de um endereço qualquer, do que ouvir de alguém um “fica ali”. As cidades pequenas não precisam de guias turísticos, todos os cidadãos podem ser um. Não precisam de carros para andar pelas pouquíssimas ruas. É bem melhor andar a pé para poder cumprimentar todos os amigos, vizinhos e parentes, ou parentes dos amigos. É uma sociedade. Um tecido de gentes, e cada fiozinho do tecido, unido e ao mesmo tempo distante dos outros tecidos maiores. Cada fiozinho está ligado ao outro e não é possível desliga – lo, isso rasgaria o tecido.

Definitivamente o que há de mais entristecedor nas cidadezinhas do interior são os domingos amarelos, estes são longos demais e com a intenção de que as horas passassem mais rapidamente, foi que saí de casa. Fui até a praça central, no mesmo bairro em que moro, no centro, lugar onde moram todos os meus amigos, vizinhos e parentes. Todos nós moramos no centro, pertinho da praça onde eu estava sentada no banco. Levei comigo um livro, mas não estava com tanta vontade de ler, era a terceira vez que o pegava para ler, lia e parava. O livro era extraordinário, mas o dia de domingo me impedia de ler, o amarelo pálido me oprimia. Deixei meu livro ao lado no banco e comecei a observar. Havia flores na praça, mas eu as tinha visto durante a semana, já não tinha mais graça, apenas em observar as flores, também não queria vê – las agora. Também tinha um cãozinho deitado, em sono profundo,

até mesmo o cão sentia sono naquele dia. Imaginei que deveria ter ficado em casa dormindo, mas já que estava ali na praça, era melhor continuar minha atividade observativa. Olhei para o céu: Azul. Passei meu olhar vagarosamente ao redor e comecei a buscar o que haveria de especial no interior de cada coisa. Será que aquelas flores estavam cansadas de me ver todos os dias? Será que aquele cão sonhava enquanto dormia? Mergulhada em minhas reflexões avistei uma pena voando, caindo de um coqueiro que estava bem a minha frente, sério e verde como sempre. Era uma pena de pássaro, que voava com aquele vento quase de brisa, levava a pena em ziguezague, rodopiando no ar. Aquela pena estava livre e possuía uma leveza própria de pena. Ela me observava e eu a observava.

Ao fim da tarde, voltei para a minha casa, em lentos passos de quem não tem pressa que acabe o dia, ou que não deseja que acabe. O domingo não estava mais amarelo. O domingo estava leve como aquela peninha, agora em minha mão.