Timida mente
Devia ser o ano de 1969.
69! Que ano mais sugestivo. Sugestivo hoje, mais de 40 anos depois. Para a época, pelo menos para mim, não fazia sentido algum, a não ser o de escrever o cabeçalho no caderno de ditados. Repetidas vezes todos os dias, a professora mandava escrever o cabeçalho no caderno de ditados. O nome da escola, a cidade, o dia, mês e ano. Tudo em letras bem desenhadas, redondinhas e legíveis. O contrário disso implicaria no castigo de ter que copiar frases no caderno de caligrafia.
Eu, no auge de meus oito a nove anos de idade, me amedrontava com a possibilidade de vir a ser castigado, de ser objeto de chacota dos coleguinhas. Um terrível medo de errar tomava conta de meus sentidos e de minha razão. Ficava apavorado só de pensar que a professora pudesse me chamar a atenção, brigar comigo, me colocar de castigo, contar pra minha mãe.
Logo eu filho de uma professora, sempre dedicada e esforçada, tal era minha mãe. As recomendações começavam em casa. “Preste atenção na aula”, “não olhe para os lados”, “não converse em sala de aula”, “não faça bagunça”, “não tire notas baixas”.
E lá estava eu em mais um dia na escola, sempre tímido, calado, introvertido. Um menino mirrado, de cabelo amarelo ouro, magricela, de orelhas grandes e rosto pequeno. A timidez era tão grande que mal balançava a cabeça para responder à professora que sempre perguntava à turma: ‘Entenderam? Se não entendeu, pergunta”. Perguntar? Eu? Filho de uma professora?
Eu precisava entender sempre e nunca perguntar. Eu deveria estar sempre atento, sem olhar para os lados, sem conversar com os coleguinhas. Poxa. Mesmo na hora do recreio eu ficava com medo de brincar. Era comum encostar numa parede, ao lado de meu irmãozinho e se divertir vendo as brincadeiras dos coleguinhas.
Meu irmão, 17 meses mais novo era um pouco mais atirado. Minto. Era bem mais atirado, menos tímido. Ousava conversar e ser chamado à atenção. Mas, no recreio, ele se juntava a mim e ficava do meu lado, talvez me apoiando na minha timidez e apatia.
Obviamente, vez ou outra, eu arriscava alguma brincadeira na hora do recreio, junto com meu irmão. As vezes acontecia alguma briga entre os coleguinhas na hora do recreio. Por vezes alguém brigava com meu irmão e eu entrava na briga para tentar protegê-lo. Batia e corria, pois tinha medo de apanhar. A recomendação de casa era para não brigar na escola ou na rua. Se isso acontecesse e se chegasse em casa chorando, apanhado, iria levar outra tunda. Sendo assim: bater e correr.
Se no recreio, de vez em quando, ousava brincar um pouco, bastava tocar a sineta para dirigir-me rapidamente à sala de aula e sentar-me logo à frente, como de costume, seguindo a recomendação de minha mãe. E assim, sentando à frente, totalmente calado e prestando muita atenção, cumpria basicamente a rotina de todos os dias na escola.
Toda esta timidez e silencio me tornava de certa forma um anônimo no meio da turma, um ser inanimado, retraído, apático e tímido, quase nunca notado ou sempre observado pela minha quietude.
Certa vez, porém, aconteceu um fato inusitado, diferente, impactante, que mexeu muito comigo e me deixou uma lembrança para o resto de minha vida. Ainda estremeço só de lembrar. É interessante como certas coisas que acontecem em nossa vida nos deixam marcas quase eternas, sejam elas coisas boas ou ruins.
No caso em questão a marca deixada não foi das melhores, embora quando vem a lembrança, dá vontade de rir. Rir para não ter que chorar. Rir, para não chorar de uma situação que geralmente é constrangedora na vida de qualquer pessoa, sobretudo uma criança tímida de nove anos de idade.
Não lembro e nem faço idéia do que aconteceu no dia anterior, ou mesmo nos momentos que antecederam ao fatídico momento, que pudesse justificar o acontecimento. Lembro sim que havia sentido alguma perturbação na hora do recreio. Me lembro de ter comentado com meu irmão de um certo incômodo, mas não me recordo de ter recebido dele qualquer comentário.
Lembro de ter falado com ele que não estava me sentindo bem, que estava suando frio e com uma dor muito ruim na barriga.
Ao voltar para a sala de aula, ou para a classe, como falávamos, o incômodo continuou. Meu irmão já não estava mais comigo. Havia voltado para a sala dele. A aula havia começado, a professora passava a matéria e as tarefas para nós fazermos. Eu não conseguia me concentrar. Cada vez mais uma dor aguda na barriga me incomodava.
Eu sentia o suor frio descer por todo o meu corpo e uma sensação de estar murchando. Eu estava com medo. Muito medo. Eu precisava ir ao banheiro. Mas, naquela época para ir ao banheiro (casinha) precisava pedir permissão à professora. Nem sempre ela permitia. Sei disso porque isso acontecia com vários colegas. Eu nunca pedi para ir ao banheiro com medo da professora ralhar comigo, ou, simplesmente de me proibir de ir à casinha.
A dor estava cada vez mais intensa. Eu não agüentava mais. O medo e a tensão só aumentavam. Meu Deus que sensação horrível. Só de lembrar me sinto incomodado. Como eu desejei que a professora lesse meus pensamentos, sentisse minha aflição, olhasse para mim e visse como eu estava.
Meus desejos foram em vão. Já sem condições de segurar meu aperto e a barriga doendo intensamente, pensei apenas com meu juízo de criança: “Seja o que deus quiser”. E Deus mandou muita merda. Me borrei todo, em plena sala de aula.
Algumas lágrimas começaram a rolar de meu rosto pálido e raquítico. Alguns coleguinhas perceberam o odor que começava a exalar por toda a sala. Não só perceberam como alguns começaram a falar:
“Professora, alguém cagou aqui!”. “Professora, que fedor é este?”. Alguns segundos depois algumas moscas já haviam me identificado e começaram a me rondar. A turma toda começou a rir de mim. “Olha, ele ta todo cagado. Eco!” “Professora, tira ele daqui. Tá fedendo”.
Nunca fui tão notado em minha vida. Comecei a chorar copiosamente. Lembro de que alguém me tirou da sala e me levou pra casa. Lembro de ter feito todo o percurso em prantos.
É o que lembro desse episódio terrível e marcante. Lembro que sofri, sofri muito, sozinho, calado, timidamente.