GOSTARIA DE TER FILHOS AUTISTAS
Gostaria de ter filhos autistas
silvania mendonça almeida margarida
Gostaria de ter um filho autista. Por que não?
Em primeiro lugar, saberia entrar no âmago do âmago do ser de alguém e descobriria lá os seus segredos. Saberia que o que passa na sua cabeça não é nada diferente das pessoas ditas normais. Gostaria de ter um filho autista para aprender o mistério das desilusões, não pela desilusão em si, mas saber que o nosso mundo ilusório pode desabar a qualquer instante, a qualquer momento, em qualquer tempo nato. Gostaria de ter um filho autista para aprender a ensinar estereotipias e dizer para o mundo que esses trejeitos são modos alegres de pensar sorrindo, sem nada afluir ou nada dizer. Não seria preciso de contos de fadas, de contos de bruxos ou gnomos, pois o silêncio já seria uma mágica no ar.
Gostaria de ter um filho autista para lidar com o normal, sim, com O NORMAL. E não com o diferente. Bastaria me perguntar. O que é diferente? O que ameaça o Globo Terrestre com as suas esquisitices? Com os seus pêndulos? Com os seus rodopios? A definição de normalidade ninguém conhece. Nem sabemos de onde somos, porque viemos e para onde vamos. A normalidade é que a esquisitice. É o momento mor. Por isso e muito mais, gostaria de ter filhos autistas. Para ver o sorriso franco e sincero. Bonito e indelével. Saudável e sem mentiras.
Bastaria um filho. Não precisaria de outros. Ele já me bastaria. Assumiria a minha vida e me abraçaria nos momentos intranquilos À maneira dele, me daria beijos e ao mesmo tempo, morderia os dedos, para dizer com toda firmeza. Você não está sozinho. Estou aqui.
Gostaria de ter filhos autistas para vê-los fazer Nescau ou Toddy. A medição do leite é perfeita. Para vê-lo ir à escola e somente a escola já lhe apetece. Mostrar a lei da mentira para todos que não contam as verdades. Mostrar as verdades para todos que contam mentiras. Gostaria de ter um filho autista para ele repetir: “As pessoas não entendem que eu preciso de repetição para aprender coisas novas. Não consigo lembrar de tudo porque é muita coisa na minha cabeça. Sinto que muitas informações se acumulam. Eu tenho muita dificuldade de prestar bastante atenção porque me perco nos pensamentos. Prefiro estar com pessoas mais velhas porque entende a minha dificuldade e aprendo coisas novas com pessoas mais velhas. Interrompo as conversas porque o assunto não me interessa. Eu não sou uma máquina não consigo fazer as coisas ao mesmo tempo”. (Ivone Falkas).
Gostaria de ter um filho autista para ele sempre me lembrar de que sou efêmero, passageiro, não sou um anjo e nem ele é especial. As pessoas têm mania de dizer que autistas são seres especiais. Não são não. São seres angelicais que em silêncio nos dão a sua lição de rebita, arrebite, ribalta. Como a dizer: “Enquanto você estiver aí do meu lado e eu aqui do outro, EM SILÊNCIO, eu consigo me orientar. A cena do autismo vai se repetir centenas de vezes, a cena se inverte, meus pais e aqueles que sentem carinho por mim. Mas ao mesmo tempo, estou abarrotando a minha alma com todos os ensinamentos que outrora eu deixei de acreditar. Sou autista sim, mas usa a palavra, a minha história, a minha verdade, pais, para fazer escola. E tua ausência fazendo silêncio em todo lugar”.
Gostaria de ter um filho autista para provar que a história se conta ao contrário. Primeiro você nasce em segredo, passa a vida sem falar ou mesmo balbuciar, sem aprender as garatujas da escrita, sem ler, sem frequentar a escola dos “antiquados” e depois renasce para o brilho e para a luz. Não consegue tirar carta de motorista, mas dirige aerobus, não consegue pegar ônibus, mas poderá volitar, não consegue se arrastar por pernas tortas, mas consegue ter asas para voar. Tudo depois, bem depois. São deuses e eu não sou bobo. Quero acompanhar. Ser, pelo menos, o acompanhante do terceiro escalão da quinta dimensão da sabedoria. Para os entendedores meia palavra basta.
Albert Einstein, autista, um dia comentou “O fluxo do tempo é uma ilusão aborrecida e persistente“ E se tornam persistentes e aborrecidos diagnósticos, variações, vacinas, alimentação, curas. Isso seria um pouquinho importante para meu filho autista, mas não seria o fundamental. E no fluxo do tempo de Einstein, o meu filho autista diria que o tempo não importa.
Por um momento, eu conseguiria fazer com que Ele deixasse o copo que roda e balança e seguraria firme com as duas mãos as cordas do balanço. Segundos depois, daria de novo a ELE o seu objeto de estima. Não esqueceria jamais de lhe ensinar a fazer bolhas de sabão e a soprar, soprar e encher o peito de “orgulho bom” para provocar alguma comunicação. Meu filho autista olharia para mim interrogativamente e sem rodopiar, abaixaria a cabeça num tom de humildade e seus olhos me diriam tudo. E mais: “Não estou pronto para começar. Virar-se-ia em seguida para mim como se estivesse a me perguntar ou a pedir ajuda. Espiar por dentro dos meus sentimentos, estendendo-me as mãos.
O cuidado em se proteger e proteger-se seria a sua máxima, denotando muito mais do que um ato reflexo. É como se abreviasse ou se abrigasse, por blindagem, da atuação de outrem. Assim, ele perceberá que outra ação pode nascer da nossa convivência.
Eu gostaria de ter um filho autista para narrar várias experiências que não é todo mundo que sabe vivenciar. Vou parando por aqui, porque livros ainda não pretendo escrever. Somente pensar e refletir o quão gratificante são para pais de autistas ter um motivo para chorar, ganhar, sorrir, amar e perdoar a si próprios. Um dia, quem sabe, ganho esta dádiva.