DEMOCRACIA E ANJOS
Dia 6 de outubro, sábado, foi aniversário de minha filha Juliette. 15 anos. Como a idéia de uma festa de debutantes é inconcebível na cabeça da minha pequena rebelde, e como isso estaria de fato incompatível com meu orçamento, agradeci ao acaso. E veio tudo muito a calhar... Minha proposta de um passeio no aniversário em vez de uma festa foi aceita pela bichinha, com alegria, apesar de eu sempre ter de ouvir dela as ressalvas quanto a não gastar muito dinheiro na viagem. Ela sempre briga comigo, me acusando de gastador, de marxista de meia tigela, críticas nessa linha. Pois bem, dia 7 foi o dia do pleito nacional para prefeitos e vereadores. No meu núcleo familiar ninguém votou. O passeio de dois dias foi perfeito para nos afastar do ambiente eleitoral. Se bem que na Vila de Trindade (Paraty, Rio, ou seja, a 5 horas da minha casa, com os novos e famigerados radares da rodovia Rio-Santos que a todo momento me pedem 40 km por hora) não estávamos completamente livres do assunto eleições. Nem mesmo numa vila de pescadores adaptada para turistas. Mas havia silêncio, pelo menos. Acordar com o som das ondas, ah… Numa caminhada que fiz de manhã cedo na Praia de Fora, um homem meditava solitário frente ao mar, sentado em posição de lótus, diante das águas verdes e inacreditavelmente lindas – acho que ele também não estava preocupado com o pleito.
Então quer dizer que eu sou um cidadão que abdica de exercer sua completa cidadania, fugindo de uma obrigação que também é um direito? Mais ou menos. Eu sei do quanto nosso país lutou para recuperar a democracia plena, após décadas de ditadura militar. Sei da importância de tal conquista. Sei que todos devem participar do processo democrático. Mas temos que entender que abster-se de votar também é uma forma de protesto. Ora, se não há nenhum candidato em quem eu confie plenamente e por quem eu me sinta realmente representado, não vejo motivos morais para que eu vá votar no “menos pior”. Não quero me sabotar moralmente. Não quero votar meramente por simpatia a um caro conhecido. E mais, em meu exílio de dois dias com minha família, nós tivemos tempo inclusive para, eventualmente, discutir política. Todos nós sempre levaremos nosso ser político aonde quer que formos. E é claro que a política estava lá no nosso paraíso alugado. A “presença” de Bob Marley em Trindade não deixa de ter conotação política. De dentro de uma loja, sai a música de outro Bob, o meu amado Dylan, mais do que político – muito embora não seja a tônica do lugar um estilo Dylan. O “paganismo” do lugar é outro elemento cultural que também me soa político. A realidade de tantos brasileiros viajarem no dia das eleições, não para votar, mas para passear, tem um sentido político. A música argentina que toca ininterruptamente na barraca de um argentino residente do lugarejo, tem um sentido político. A moça que viaja sozinha para o balneário e vem me pedir para que eu tire uma foto dela, tem um sentido político (?). Bem. Acho que tem.
Ela aparentava uns 27 anos e estava sozinha. Estávamos eu minha patroa numa meia sombra de um arbusto, contemplando a beleza da moça, a quem eu falsamente atribuía defeitos com aqueles comentários vulgares do tipo “ela não tem um corpo tão legal” e esse tipo de coisa nojenta (fique claro que eu apenas brincava de ser nojento). De toda forma, nojento, sujo, feio, referindo-me, vergonhosamente – ainda que dissimulado –, à suposta flacidez das discretas nádegas da moça. Foi quando, de repente, ela se levantou, caminhou 30 metros na areia em nossa direção e disse pra gente, estendendo-nos a câmera: “vocês podem tirar uma foto minha? é que eu estou sozinha...”. Minha dona gentilmente respondeu: “claro que sim... ‘ele’ tira”. Peguei a máquina com alegria e vi, subitamente, à minha frente, a mulher mais linda do mundo fazendo pose pra que eu a fotografasse. Magra, não muito. Média estatura. Pele clara. Cabelos cacheados negros. Sorriso hipnótico do tipo que os seres dotados de uma candura metafísica são capazes de ostentar. Depois de duas fotos eu falei “mais uma”. Ela agradeceu, voltou para seu lado e entrou no mar. Pensei, e comentei com minha concubina: “sabe o nome disso que acabamos de ver?”, “hum, qual é o nome?”, “o nome disso é anjo”. “Acabamos de ser agraciados com um contato imediato com um anjo”, arrematei. “Enxuga a baba, Peladinho (apelido carinhoso e íntimo), e vai mergulhar, vai”, disse a mim com sarcasmo e sem irritação. Uma esposa aceitar em “paz” a idéia de que o mundo está cheio de jovens solteiras lindas é um ato político.
No começo do caminho de volta, almoçamos num lugar belíssimo – a Praia do Cepilho, uma das mais lindas que conheci na vida –, enquanto, dum ponto bem do alto, onde fica o restaurante, víamos muitos surfistas fazendo suas manobras. Pensei com alegria em como eu gostaria de ser um deles, mas, ao mesmo tempo, não senti tristeza por minha frustração, apesar da “inveja branca”, até mesmo porque eu percebo alguma possibilidade de eu ser um dia um velhinho aprendiz de surfe – o que será o máximo. Mas vê-los, realmente não me é incômodo, não mesmo. Isso porque surfistas são como crianças: e ninguém fica incomodado em ver crianças brincando com alegria. A alegria também é um ato político.