No dia das aves

                 Deus me livre de ganhar afeição a                   passarinho; eles morrem à toa. 
                                           Manuel Bandeira

        Durante muitos anos, um sabiá cantador foi o meu companheiro de todas as horas. De todas as horas porque, nem de madrugada, ele emudecia! Nas minhas noites de cruciantes insônias, acendia a luz, e eis que ele me saudava com seu lindo canto. Quebrava, assim, ousadamente, o silêncio da noite alta, com um solfejo profundo, cadenciado, melodioso. 
        Um dia, num infeliz descuido, deixei a portinha de sua gaiola aberta. O que aconteceu? Ele bateu asas e voou. Me lembro perfeitamente do seu canto de alívio e despedida.
          Durante muitos anos, um curió alegrou meus dias. Presente de um amigo, no dia do meu aniversário. Sabedor de que eu adorava pássaros, ele não hesitou em me presentear com um canoro curió. Mantive-o em conveniente segredo, sem lhe abafar o canto. O curió estava entre os passrins que não podiam ser criados em cativeiro. Um dia, acordei, e não ouvi o seu delicado gorjeio. Ah, ele havia morrido durante a madrugada. Saudades do meu curió!
          Durante muitos anos, um, não, mas três frágeis pintassilgos alegraram a varanda de minha casa. Comprara-os numa feira-livre, tirando-os das mãos de um cruel vendedor de pássaros. Dei-lhes bom alpiste e boa água. E eles, no seu modesto trinado, pareciam agradecer por havê-los livrados do sol inclemente que se abatia sobre a tal feirinha. Morreram, não me lembro como.
          Durante muitos anos, três ariscos canários moraram comigo. Um belga e dois canarinhos da terra. Quando os três cantavam ao mesmo tempo, não havia orquestra melhor em todo o mundo.
          Os canários da terra eu também os mantinha bem-guardados. Já naquele tempo eles não podiam ser comercializados e muito menos criados em gaiolas.
        O belga, encantador, da cor da gema do ovo, executava sua partitura com a perfeição dos grandes músicos, em sucessivos e incansáveis concertos. Cheguei a gravar o seu show numa fita cassete, que se perdeu no emaranhado deste meu gabinete de trabalho.
          Durante muitos anos, uma graúna exuberante encheu de alegria minha vida. Mais de dez anos ela morou comigo. Gostava de todas as frutas. Por isso, nunca a deixei sem uma boa manga rosa, sem a banana da terra, sem a doce goiaba e sem a laranja madura. Um dia, ela me abandonou, sem dizer por que partira. Considerei isso u´a desfeita.
          Decidi,então, que a partir daquele momento não mais criaria passarins. Renunciava, definitivamente, a minha condição de passarinheiro.
          Enquanto morei em casa, ou melhor dizendo, no jardim de minha casa, havia um frondoso flamboyant. Nele, todos os dias e a qualquer hora, pousavam dezenas de pássaros. Cada um trazia no bico sua mensagem. Eram rolinhas, sonhaços, bem-te-vis e mais outros que não conseguia identificar. Contentava-me em ouvir-lhes os gorjeios, descobrindo, ao mesmo tempo, que, em liberdade, eles cantavam mais e melhor.
         Hoje, 5 de outubro, é o dia das aves.
        Quero festejar essa data na companhia da cotovia.
        Podia ter escolhido fazê-lo ao lado de um sabiá, o pássaro símbolo do Brasil, por lei, desde 2002. A cotovia, porém, no meu modo de ver, dará um colorido maior a tão doce efeméride, e direi por quê. 
          Ela é um passaro franciscano. Certa feita, contam os livros seráficos, Francisco de Assis, falando para frei Leão, seu irmão de burel, lhe teria dito o seguinte: "A irmã cotovia é um exemplo para o irmão menor. É muito parecida conosco, por causa de seu capuzinho. Suas penas são cor-de-terra como o nosso hábito."
          Vejo, pois, na cotovia, o passarinho mais indicado para lembrar o dia das aves. Dentre todos os pássaros, foi ela que mereceu o declarado e enfático carinho do Poverello de Assis, Padroeiro da Ecologia, e amigo da passarada.
          Minha crônica de hoje, dia das aves, vai para a cotovia, como disse ante, o passarim seráfico. 

     

Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 05/10/2012
Reeditado em 15/11/2019
Código do texto: T3917721
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