MENDIGA POR UM INSTANTE
O preconceito é uma realidade que não podemos negar. Pouco se sabe sobre a nossa capacidade de trabalho, sobre o nosso direito à cidadania.
Ainda recente, inauguraram uma bonita padaria perto de minha residência. Num dos passeios matinais que costumo fazer de scooter para tomar um pouco de sol ou resolver algum compromisso, resolvi conhecê-la. Não conseguindo vencer o pequeno degrau, dirigi-me a um rapaz que me pareceu ser o gerente e disse:
— Eu queria dar uma entradinha aí, mas não posso por causa do degrau.
— Eu vou lhe dar um pedaço de pão — disse-me ele, solícito.
Imediatamente determinou a uma das servidoras que o fizesse, a qual, minutos depois, entregou-me o presente num saco de papel. Agradeci e coloquei-o no cestinho do scooter.
Claramente, percebi que, pelo fato de me encontrar num veículo próprio para deficiente físico e isso costumar passar uma idéia de mendicância, havia sido confundida, razão por que resolvi mostrar-me e executar um trabalhinho na seara da conscientização. Manobrei o meu esdrúxulo veículo e dirigi-me ao rapaz, que orientava um profissional que inspecionava a porta de vidro com defeito.
— Você sabe que porta de vidro estilhaça? É mesmo prudente que seja revista. O meu marido tem um consultório aqui no prédio Aquárius Center e a porta estilhaçou. Ele conseguiu a reposição porque o profissional ainda não lhe havia entregado o serviço. E é cara, sabia? — disse-lhe em tom conhecedor.
O rapaz olhou-me atento e retrucou:
— A senhora vai adorar o pão. É especialidade nossa!
— Com certeza! Faça uma rampinha, que serei sua freguesa. Virei aqui todos os dias.
Despedi-me, agradeci e saí. Ao chegar a casa, peguei o saco de papel e de lá retirei a dádiva: um pedaço de pão, tipo bisnaga, com uma fatia de queijo e uma folha de alface. Como sou meio gordinha, gostei por não conter manteiga ou maionese. Fiz um cafezinho e deliciei-me com ele.
De outra vez, fui conhecer uma boutique de carne, muito requintada, inaugurada na minha rua. As paredes espelhadas multiplicavam o ambiente e as vitrines exibiam as carnes, as mais diversificadas e em variados cortes.
Os servidores uniformizados indicavam higiene e bom trato. Deixei-me ficar por alguns minutos, quando um senhor bonito, alto, bigode largo, bem vestido, saiu do interior da Casa de Carnes e veio atender-me. Como estava apenas passeando, fiquei um tanto sem graça e simplesmente perguntei aleatoriamente o preço da carne em mantas da vitrine que eu estava defronte.
— É carne de sol e está na promoção — disse-me ele.
— Será que não é muito salgada? — retruquei.
— Não! É especialidade nossa. Isto é picanha, minha senhora!
O preço, realmente, estava bem abaixo. Mas não havia saído para comprar carne. Hesitei um pouco, enquanto ele ainda esperava ao meu lado, não sei se num atendimento diferenciado ou preocupado com a minha presença no local. Para surpresa, usou da palavra em tom educado e compassivo:
— Vou fazer a carne pela metade do preço para senhora.
Muito desapontada, pedi um quilo da carne, pois, por sorte, portava uma bolsinha que continha alguns trocados, praticamente moedas, que tive que juntar e recontá-las.
Em casa, botei-a no forno, e quando o marido chegou para o almoço achou a carne excelente, além de bem posicionada numa bonita travessa. Realmente, dourada e no tempero certo. Também, tratava-se de picanha! Contei o ocorrido e o preço.
— Por que você não comprou uns dez quilos? Mesmo que tivesse que voltar aqui para pegar dinheiro ou cheque — disse-me ele em tom de brincadeira, acrescentando que eu seria a compradora-mor da casa, a partir daquele dia.
Rimos muito, e mais esse episódio juntou-se ao arsenal de minha trajetória, comprovando que falta ainda muita consciência popular sobre as diversidades. Nossa estampa carrega o estigma do "coitadismo", causando piedade, temor e quase nunca o respeito. É como se não fôssemos egressos da mesma sociedade.