Bandeirante

Bandeirante.

Guel Brasil.

Isto se deu no verão de 1960, quando meu pai estava abrindo as estradas que saindo de Poções passava pelo Arraial de Duas Vendas, e seguia em frente até chegar à Vilazinha de Queimadas, com meia dúzia de casas, e naquela época tinha em torno de trinta habitantes. Meu pai, que Deus o tenha, (faleceu aos 95 anos em Dezembro de 2011), era uma espécie de subempreiteiro, e dava trabalho para muita gente da região. E tinha trabalho pra muitas pessoas, porque tudo era feito de forma rudimentar; as ferramentas utilizadas eram machados, foices, picaretas, chibancas, enxadetes, enxadas, pás de vários tipos e tamanhos, e a terra era puxada em carro de boi. Cerca de cinquenta homens trabalhando, e a cada um papai dava uma tarefa. A locação da estrada era ele quem fazia, com três ou quatro homens à sua frente abrindo picadas no mato fechado; na retaguarda vinham os outros trabalhadores derrubando as árvores mais grossas, e arrancando os toucos; era um serviço braçal, demorado e cansativo. Eu tenho na figura de meu pai um engenheiro autodidata, que nunca sentou-se nos bancos de nenhuma faculdade; um bandeirante sem bandeira, que talvez nunca seja reconhecido pelas muitas coisas que fez. A malha de estradas vicinais dos Municípios de Poções, Planalto, Nova Canaã, Iguaí e Ibicuí até chegar em Ponto de Astero, passou pelas mãos habilidosas de meu pai, e dos homens que trabalharam com ele.

Homens com pouca ou nenhuma cultura, muitos deles mal sabiam assinar o próprio nome. Benedito Alves de Sousa era um deles; como era bom na derruba de mata e por tanto hábil com o machado, uma de suas empreitadas foi a derradeira. Ele, com mais dois companheiros seu pegaram a derruba de um piqui erado, que estava atrapalhando o eixo viário da estrada que iria passar por ali; a árvore era enorme, medindo cerca de vinte metros na sua altura, com um rodo de mais ou menos seis metros; uma árvore desse porte não dava pra ser derrubada a punho de machado; combinaram então que

a primeira tarefa do dia era a limpeza do pé da arvore e no entorno dela, para facilitar o corte que seria feito com um *traçador. Benedito ficou encarregado de fazer esse serviço; como de costume levantou-se cedo, e foi fazer o que tinha sido combinado. Foice e facão, ferramentas que ele iria utilizar; ele mal se aproximou da grande árvore e foi picado por uma Surucucu-pico-de-jaca; saiu dali aos gritos e foi socorrido pelos companheiros que ainda tiveram a destreza de matar a cobra.

Agora era preciso tentar salvar Benedito, o que não seria nada fácil; de onde eles estavam até a cidade tinha cerca de quinze quiló-metros, e o único transporte no momento era um carro de boi; papai então sugeriu que o levassem até Planalto, e com certeza de lá o transporte seria mais fácil, e quem sabe até poderiam ter o soro anti-ofídico, que se aplicado a tempo ajudariam o pobre rapaz a sobreviver.

Mais ou menos uma hora depois e eles estavam chegando em Planalto; nenhum hospital, ou farmácia, ou mesmo alguém que pudes-

se ter o soro. Rapidamente providenciaram o transporte e Benedito foi levado para a nossa casa no Município de Poções, que também não tinha hospital; o prefeito da Cidade nessa época era Dr. Aloísio que providenciou rapidamente o soro pro rapaz que já estava às beiras da morte. O veneno da cobra já tinha se espalhado por todo o organismo, e agora o jeito era esperar.

Cerca de oito dias depois, já tendo sofrido muito com agonia e dor, o rapaz faleceu, deixando esposa e filhos. Foi sepultado no cemitério da família Sampaio no alto do Chapadão na Faz. Três Barras.

Eu já tinha visto outras mortes, mas não assim tão próximo e no quarto da nossa casa e onde eu dormia; durante um bom tempo eu passei a dormir na sala na minha boa cama de lona. Aos poucos o tempo tratou de corrigir e apagar as lacunas que a morte deixa.

(*traçador é um tipo de serrote grande, com cabos de madeira nas duas extremidades, e o manuseio é feito por dois homens).

Guel Brasil
Enviado por Guel Brasil em 03/10/2012
Código do texto: T3914578
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