Hoje

Hoje acordei tarde, pois passei a madrugada lendo. Leitura que me fez até sonhar com episódios do livro, misturados à realidade com uma pitada de sonho. Ao acordar, à toa andando pela casa, encontro um dos livros do meu pai: As Melhores Crônicas de Rubem Alves. Rubem Alves pra mim é uma fonte de inspiração. A beleza e o sentido de uma estória em particular ficaram gravados no meu coração. Do livro citado acima, abri numa página aleatória que se encontrava uma crônica chamada “Fazer Nada”. Incrível como coisas comuns do dia a dia sempre querem nos dizer alguma coisa.

Nesse momento de longas férias determinadas pela greve, nos últimos dias me senti vazia, triste, sozinha, vendo as pessoas ao meu redor trabalhando, estudando, fazendo cursos, indo a encontros religiosos. E eu, à longa espera de um resultado para que as aulas voltem, fico sem “fazer nada”. Ao ler a crônica, em especial por ser de um autor o qual faz parte da minha lista de pessoas significativas, recebi um consolo para a alma e o coração. Por mais que eu saiba que não se há muito o que fazer nessa situação a qual me encontro, as palavras de Rubem trouxeram um alívio e um momento de reflexão. Na crônica ele diz: “Lembro-me das minhas primeiras lições de filosofia, de como eu me ri quando li que, para o taoísmo, a felicidade suprema é aquilo o que dão nome de Wu-Wei, fazer nada. Achei que eram doidos. Porque, naqueles tempos, eu era um ser ético que julgava que a ação era a coisa mais importante. Ainda não havia aprendido as lições do Paraíso – que quando estamos diante da beleza só nos resta... fazer nada, gozar da felicidade que nos é oferecida.” (Ele comenta anteriormente sobre a beleza dos ipês-rosa que, que floriram antes do tempo, em contraste com o céu azul.) Depois continua: “No meu livro de capa verde estão escritos os desejos dos outros. Ele se chama agenda. Os meus desejos, não é preciso que ninguém me lembre deles. Não precisam ser escritos. Sei-os (isto mesmo, seios!) de cor. De cor quer dizer no coração. Aquilo que está escrito no coração não necessita de agenda porque a gente não esquece. O que a memória ama fica eterno. Se preciso de agenda é porque não está no coração. Não é o meu desejo. É o desejo de um outro. (...) primeiro a obrigação, depois a devoção; primeiro a agenda, depois o prazer; primeiro o desejo dos outros, depois o desejo da gente. Não é essa a base de toda vida social? Uma pessoa boa, responsável, não é justamente aquela que se esquece dos seus desejos e obedece aos desejos de um outro, não importando que o outro more dentro dela mesma?” Ainda completa: “Certos estão os taoístas: a felicidade superma é o Wu-Wei, fazer nada. Porque só podem se entregar às delícias da contemplação aqueles que fizeram as pazes com a vida e não se esqueceram dos seus próprios desejos.”

Esse texto me fez lembrar de algo que sempre me recordo no dia a dia. Depois de tanto lutar, pedir, merecer, hoje tenho uma vida tranqüila, faço as coisas que sempre quis fazer. Mesmo com certas dificuldades, pois não estamos livres delas na vida, e são elas que nos fazem subir mais um degrau na longa escada que nos leva à plenitude e à sabedoria. Por mais chateada que às vezes fico nessa situação de “fazer nada”, o que causa irritação, na vontade de estar fazendo alguma coisa, de produzir algo, de me sentir útil, esse texto me fez resgatar a gratidão sobre a vida e sobre o Grande Espírito, por ter me concedido oportunidades as quais consegui agarrar e, trabalhando com elas, construo diariamente a minha escada com degraus fortes. Rubem ainda ressalta: “Mas há um vazio ruim que não faz lugar para coisa alguma, vazio-deserto, ermo onde moram os demônios. Esse vazio, túmulo do desejo, precisa ser enchido de qualquer forma. Pois, se não o for, ali virá morar a ansiedade. A ansiedade é o buraco deixado pelo desejo esquecido, o buraco de um coração que não mais existe: um grito desesperado pedindo para que desejo e coração voltem, para que se possa de novo gozar a beleza da copa do ipê contra o azul do céu.”

Às vezes me encontro nessa situação. Sinto um vazio ruim que traz uma busca desesperada de se fazer algo. Esse texto me fez refletir sobre isso. Não é preciso sentir esse vazio. Como a força do pensamento é capaz de fazer-nos construir nossa própria realidade, desde que essa força tenha seu início fundamentado em sentimentos profundos e sinceros, podemos escolher não sentir esse vazio. Olhando ao redor, refletindo sobre as perdas e os ganhos da vida, podemos ver que sempre haverá algo que nós devemos agradecer e nos sentirmos felizes com isso. É aí que mudamos a sintonia da energia que mandamos para fora no Universo e que faz com que criamos a nossa própria realidade, baseada em momentos felizes e sentimentos sinceros. Não fazer nada tem dois lados: se sentir mal e inútil por estar à toa; ou, contemplando a beleza da Natureza que se faz presente onde quer que estejamos, reconhecendo o que fizemos de bom para os outros, para nós mesmos e para o mundo, podemos nos sentir plenos e grandes, parte da Natureza grandiosa e perfeita e deixar a vida seguir o seu ciclo. Basta escolher qual das duas coisas queremos sentir.

(Esse texto foi escrito em Setembro de 2011)

Fernanda Capuruço Leonel
Enviado por Fernanda Capuruço Leonel em 03/10/2012
Reeditado em 03/10/2012
Código do texto: T3913306
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