Crônicas Coletivas

O dia de Jair começa ainda de madrugada. Cobrador de ônibus, sua rotina não é fácil. Convive com obstáculos constantes que dificultam seu dia a dia, tais como: trânsito, más condições de trabalho, falta de educação dos usuários, perigo de assaltos… Mas, apesar das coisas ruins, Jair ainda consegue se divertir no serviço, graças ao contato próximo com muitos de seus passageiros. São eles que proporcionam momentos e histórias que aqui serão narradas, pelo próprio cobrador, na seção “Crônicas Coletivas”.

“O Sr. Sasake sempre foi um dos primeiros passageiros do dia. Pegava o ônibus no mesmo horário, por volta das 07:00 horas da manhã, no ponto em frente ao “Lar Recanto dos Pássaros”, sua moradia nos últimos dez anos. Sr. Sasake, perto dos 80 anos, mantinha o vigor e a disposição necessários para, diariamente, ir até o Parque da Aclimação praticar suas caminhadas matinais.

Essa disposição toda também ficava evidente quando ele adentrava o ônibus. Cumprimentava o motorista, dava-me um aperto de mão e ocupava seu assento próximo ao meu. Começava então a nos atualizar sobre as notícias do dia, comentando as manchetes que havia escutado em seu rádio de pilha. Também gostava de discutir a rodada do futebol no dia anterior, principalmente quando envolvia o seu Santos. Mas o que mais o deixava animado eram suas histórias do tempo de exército no Japão. As glórias, o orgulho, a disciplina, os companheiros, todas as lembranças faziam seus olhos brilharem. No trajeto entre a casa de repouso e o parque, as narrativas do Sr. Sasake ganhavam dias, meses, até mesmo anos, assim como nomes, lugares e detalhes. Confesso que por vezes duvidei de algumas histórias, para mim pareciam “contos de um maluco de guerra”. Porém foram essas histórias que, por diversas ocasiões, preencheram minhas manhãs, e junto ao Sr. Sasake viajei por suas memórias.

Eis que em uma manhã Sr. Sasake não embarcou no ponto habitual. Imaginei qual contratempo teria acontecido. Algum compromisso previamente marcado? Uma gripe o teria acamado? O relógio não teria despertado? Estranhei ainda mais quando sua ausência repetiu-se durante toda a semana. Intrigava-me o fato de um senhor tão disciplinado e metódico ter mudado sua rotina de maneira tão repentina.

Aproveitei meu sábado de folga para responder as perguntas surgidas durante a semana. Fui até o “Lar Recanto dos Pássaros” à procura do Sr. Sasake. Encaminhei-me até a recepção e perguntei por ele. A atendente olhou-me longamente e disse:

- O senhor é algum parente?

- Não, não, meu nome é Jair, sou cobrador do ônibus que o Sr. Sasake costumava pegar, e percebi que essa semana ele não apareceu nenhum dia - respondi.

- Olha, eu sinto lhe informar, mas o Sr. Sasake faleceu no começo da semana – informou a atendente, parecendo tomar cuidado com as palavras.

Ainda surpreso pela informação, fiquei sem saber o que perguntar à recepcionista. O silêncio foi quebrado por uma lembrança da atendente:

- Olha, o filho dele está aqui, recolhendo alguns dos objetos do Sr. Sasake.

Decidi esperar para encontrá-lo. Cerca de 10 minutos depois, surge o filho de Sr. Sasake, carregando algumas caixas. Após sermos apresentados pela recepcionista, digo-lhe que sinto pela perda, e explico como conheci seu pai. Ele agradece a preocupação e diz:

- Meu pai pediu que eu lhe entregasse isto – e estende a mão para me entregar um envelope já amarelado pela ação do tempo.

Sem ainda entender o que aquilo significava, abro o envelope. Dentro dele, uma foto e uma medalha. A medalha trazia uma inscrição em japonês, onde só consegui entender o ano, 1952. A foto, em preto e branco, trazia o Sr. Sasake trajando um uniforme militar, a frente do que parecia ser um batalhão. No verso da foto, os seguintes dizeres: “Para que lembre-se sempre de minhas histórias. Um abraço, Sr. Sasake”. Foi então que, emocionado, percebi não ter perdido apenas um passageiro, e sim, um bom amigo”.

DanBraga
Enviado por DanBraga em 02/10/2012
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