Dois Perdidos numa noite limpa...
Ela:
_ Não seria “ Dois Perdidos numa noite suja”?
Ele:
_ Como você é óbvia. Nunca ouviu falar de paráfrases?
Ela:
_ Plágio, você quer dizer.
Ele:
_ Não, homenagem a um escritor que um dia pensou num título legal.
Ela:
_ Meu Deus! Plágio descarado! E vem falar em homenagem a Plínio Marcos... Onde está a criatividade dos brasileiros? Onde? Onde? Ooooonde????
Ele:
_ Ok, pense o que quiser. Continuemos as nossas divagações.
Ela:
_ Sim, você pensa em que exatamente? Peça de teatro? Roteiro de filme? Novela?
Ele:
_ Hum, não sei... Eu não poderia escrever o texto e aí as pessoas decidirem do que se trata?
Ela:
_ Meu Deus...
Ele:
_ Ué, A Casa das Sete Mulheres não era roteiro para minissérie. E, no entanto...
Ela:
_ Sei...
Ele:
_ Tá, peça de teatro, então. Não sei...
Ela:
_ Ok, vejamos. Se for peça de teatro você tem de primeiro pensar nos personagens. Tipos característicos entende?
Ele:
_ Bem, eu pensei que a história viesse primeiro.
Ela:
_ Alguém tem um pau de macarrão aí? Sim, criatura, a história vem primeiro, mas a história já existe, não? Agora só falta caracterizar os personagens.
Ele:
_ Não...
Ela:
_ Não o quê?
Ele:
_ A história não existe.
Ela:
_ Putz! Então, como me disse que tinha um texto pronto?
Ele:
_ Não. Eu disse que tinha um título pronto. Dois perdidos numa noite limpa. Só isso.
Ela:
_ Pau de macarrão por favor!
***
Ela:
_Bem, vamos lá... poderíamos falar sobre...
Ele:
_ O caos.
Ela:
_Hã??
Ele:
_ Ando tão deprimido.
Ela:
_ É mesmo?? Puxa...O que houve, amigo? Desabafe. Chore. Conte-me seus problemas. Saiba que em mim você pode confiar. Você tem em mim uma amiga para todas as horas. Vamos, conte, tome meu ombro, chore e conte-me tudo...
Ele:
_ Poxa, tu é amiga mesmo... Fico até emocionado com tamanha consideração. Poxa, você é tão altruísta, tão solidária, tão, tão...
Ela:
_Arhhhhhg!!!! Conta logo, não agüento suspense! Tá me dando urticária!
***
Ele:
_ Depois que ela chorou em meu ombro, nunca mais olhei na cara dela...
Ela:
_ Há! Há! Há! Só você mesmo pra dizer uma bobagem dessa. Onde já se viu deixar de ser amigo de uma mulher só porque ela chorou em seu ombro?
Ele:
_ Mas foi verdade.
Ela:
_ Não, você não fez isso com a pobre da moça.
Ele:
_ Fiz, sim.
Ela:
_Mentira.
Ele:
_ Verdade.
Ela:
_ Putz! Como teve coragem? Meu Deus, a menina sofrendo, precisando de um ombro amigo e você a abandona? Como pôde fazer isso? Como??? Meu Deus. Até parece que foi comigo! Nossa! Como os homens são insensíveis. Tadinha da menina... Tadinha...Você é um grosso, um, um, um...
Ele:
_ Bem...
Ela:
_Sim?
Ele:
_ Tome esse lenço...
Ela:
_ Puxa, ob... obr... obrigada...
Ele:
_ Sim... E, por favor, vá mais pra lá, suas lágrimas estão caindo em meu braço...
***
Ele:
_Conte, conte, por favor, conte.
Ela:
_ Não conto.
Ele:
_Por favor, por favor, por favor, por favor, por favor...
Ela:
_Não.
Ele:
_ Por favor!!!! Eu preciso saber! Não faça isso comigo. Por favor! Pelo amor de Santa Teresa do Menino Jesus! Pelo amor de Jesus, o filho de Deus! Pelo amor de Deus!
Ela:
_Aff! Tá bom. Não precisa apelar também. Sim, ela me disse que eu tenho uma
predisposição para o desenvolvimento de um distúrbio neurológico crônico... É isso.
Ele:
_Sei.
Ela:
_ Pronto. Agora que lhe contei, me conte aquilo que ia me falar outro dia, sobre o que a cigana lhe disse.
Ele:
_ Não.
Ela:
_ Por favor, me conte, quero saber...
Ele:
_ Não.
Ela:
_ Poxa, eu lhe contei o que ela me falou.
Ele:
_ Sim, mas você contou porque quis.
Ela:
_ Não. Contei porque você insistiu.
Ele:
_ Sim, mas é porque tenho necessidade de saber das coisas.
Ela:
_ Eu também tenho...
Ele:
_ Mas isso é problema seu. Não meu.
Ela:
_ Pau de macarrão!!!!!!!!!!
***
Ele:
_ Ah! Você é muito chata! Não sabe nem brincar!
Ela:
_ Tá. Então comece tudo de novo.
Ele:
_ Sim, vamos fazer de conta que você foi a um analista e aí você começa a contar todos os seus podres, ok?
Ela:
_Eu não tenho podres, meu filho...
Ele:
_ ha ha ha. Faça-me rir. Não vai dizer que você nunca teve pensamentos sórdidos???
Ela:
_Não!
Ele:
_ Eu não disse?
Ela:
_ Não disse o quê? Eu disse “não”!
Ele:
_ Não! Você disse que não ia dizer. Se não ia dizer é porque teve e não tem coragem de confessar!
Ela:
_Putz! Tu é doido. Acabei de crer.
Ele:
_ Só os doidos dizem a verdade!
Ela:
_Puta que pariu!! Vá se ...
Ele:
_ Ei! Não disse???? Não disse??? Tu é podre!!! Podre!!! hahahaha!
Ela:
_ Só matando mesmo...
***
Ela:
_ Vou-me embora.
Ele:
_ Ih, ficou brava, foi?
Ela:
_ Não, só estou cansada.
Ele:
_ E a nossa peça de teatro?
Ela:
_ Desisti. E de mais a mais, enquanto as pessoas se divertem em bares, sorveterias, nós estamos aqui, nesse calor infernal, numa praça deserta, onde o máximo que conseguimos durante horas foi discutir sobre coisas sem nexo.
Ele:
_ Tem certeza?
Ela:
_Claro! Nunca vai haver peça de teatro, nunca vai haver textos, nunca vai haver nada. E isso, simplesmente porque não temos talento pra isso. Sabe de uma? Fui!
Ele:
_ Não, não vá. Olha só, pensei num outro texto. Quer dizer, num título. “Textos perdidos”. Que tal?
Ela:
_ Podre! Melhor voltarmos ao título inicial: Dois perdidos numa noite limpa.
Ele:
_ Aêeee! Sabia que um dia você iria reconhecer meu talento. Você me ama! Você me ama! Você me...
Ela:
_ Mais uma palavra e esse pau de macarrão vai realmente parar na sua cabeça!
(Adriana Luz)