Paris: reminiscências
A rua Mouffetard reveste-se de muitas cores: bancas de frutas, verduras e gêneros diversos espalham-se por todos os cantos. Vou descendo devagar a velha "Mouffe", lembrando-me de outro tempo, vinte anos atrás, quando era bolsista do governo francês. Morava na rua do lado e vinha todas as manhãs tomar meu café com "croissant" em um dos simpáticos cafés que animavam a rua. Percorro-a devagar, revendo coisas antigas, descobrindo coisas novas, como os restaurantes que se multiplicaram, em detrimento dos velhos cafés. Paro em frente de uma pequena livraria; vou passando os olhos pelos títulos, sem compromisso algum. Lá está um Cortázar: meu olhar fixa-se no exemplar, talvez usado, provavelmente um tanto poeirento. Cortázar me faz recordar de um episódio que vivi há muitos anos, neste mesmo lugar.Várias vezes, sobrevivendo no meio da extensa comunidade latino-americana de Paris, lembrava-me dele. Cortázar teria dito que foi na capital da França que se descobriu como um genuíno latino-americano. Tinha vontade de encontrá-lo, abraçá-lo e dizer-lhe que também eu tinha reencontrado minhas raízes em Paris. Modestamente, eu era mais um membro dessa comunidade tão vibrante, nem sempre bem compreendida.
Naquela manhã remota, a "Mouffe" apresentava o melhor do seu colorido. Caminhava ao longo de seus meandros, procurando não perder nada do que pudesse me oferecer. Na verdade, já pensava vagamente na volta, não muito distante. Seria fácil a readaptação ao Brasil? Chegaria um tanto mais crítica,por certo mais consciente. E imbuída da idéia de que pertencia à grande família latino-americana... Embora a língua nos separasse, não havia dúvida de que éramos uma comunidade ligada por fortes laços. Não o comprovava nosso perfeito entendimento em Paris, alicerçado por um "portunhol" onde pipocavam expressões francesas?
Pois flanava eu - devia ser um dia em que só teria aula no final da tarde - quando ouvi os passos de alguém que corria atrás de mim. Virei-me e deparei com um rapaz corpulento, que me falou, ofegante:
- Yo soy argentino...
Parou para respirar. Diante de mim, aquela figura graúda, cabelos de corte médio, olhos muito grandes. Uma espécie de nuvem toldou-me o olhar. E se fosse...
- Cortázar? - deixei escapar, pensando em voz audível.
Ele riu. Tanta era minha vontade de encontrar Cortázar, que eu continuava com um pé na dúvida. Tentava convencer-me de que podia ser o próprio. Afinal, morava em Paris. Mas, e a idade? Seria bem mais velho do que o rapaz a minha frente.
Já com o fôlego refeito, ele continuou:
- Tu és irmã do grande campeão...?
Estava explicado. Foi a minha vez de rir.
- E tu correste atrás de mim para ter a honra de conhecer a irmã do campeão? Não me digas...
- Uma vez jogou em Buenos Aires. Fui vê-lo, foi admirável.
O rapaz que apareceu a galope, e parou a minha frente, embevecido, ficou para trás. Como há vinte anos, continuo percorrendo a minha querida Mouffetard. Vou-me afastando da livraria, onde se refugia um mundo de cronópios e de famas. Caminho devagar, curtindo aquela rua que me traz boas recordações. Revejo a cena do argentino, que me descobriu um dia, Deus sabe como, e ponho-me a sorrir. De fato, somos todos latino-americanos...