PÁSSAROS FERIDOS

Outro dia, 10/5/2012, eu fui ao cemitério levar umas flores para minha mãe. Ela está sepultada num cemitério plano e amplo, muito bem cuidado, bem gramado e arborizado na região do Morumbi, mas vi algo que me deixou revoltado que fui até a Administração deixar meu protesto. É inconcebível que num lugar tão bonito se instale um aviário, mais precisamente uma grande gaiola. Por si só, cemitério já é um local triste e os pássaros deveriam estar lá soltos, voando e cantando sua liberdade amenizando a dor de quem vai homenagear o ente que se foi.

Será que precisamos machucar uma asa para ferir um pássaro? Pássaros nasceram para voar, senão Deus não os proveria desses membros. Como terá sido a impressão dos visitantes no dia das mães diante daquela prisão? Espero que tenha havido muitos protestos como o meu. Infelizmente, eu não tinha um celular provido com câmera digital para levar essas imagens para a Internet.

Certa vez eu fui a uma unidade de um laboratório de medicina diagnóstica muito conceituado e dos maiores de sua rede. Sua sala de espera fica no centro de um anfiteatro iluminado com luz natural e eis que, dentro dessa sala, suspensa a uma “delicada” corrente havia uma também “delicada” gaiola e um pobre pássaro. Após ter sido atendido fui à Administração e disse à médica chefe:

- Se o objetivo de vocês é proporcionar admiração dos pacientes, pois saibam que muitos estão condenando a prisão daquele pássaro. Pode ser bonito visualmente, mas é chocante, principalmente para crianças, pois hoje nas escolas um dos assuntos mais comentado é a ecologia. Vocês estão dando um mau exemplo.

Quando voltei para apanhar o resultado dois ou três dias depois, a gaiola não se encontrava mais lá. Respirei aliviado. Teria sido meu protesto? Mas, de uma coisa nunca saberemos, se não presenciarmos: Para onde foi o pássaro? Estaria ainda engaiolado enfeitando um jardim ou outra sala? Quando vejo coisas assim, não deixo de fazer o meu protesto.

Leitores, se pensarem que eu sempre fui assim, estão enganados. Creio que até aos dez anos de idade eu era um menino que carregava um estilingue pendurado no pescoço, assim como todos os garotos do pedaço. Pássaros, principalmente, pardais, povoavam as árvores onde eu morava no bairro do Butantã nos anos 1950. Eu tinha boa pontaria em alvo fixo, mas meu estilingue não tinha nenhum corte. Nunca tinha acertado uma estilingada num pássaro. Junto à molecada eu segurava a lanterna na tabela de classificação. Era motivo de gozação. Um dia havia um pardal ciscando umas fezes de cavalo no meio da rua. Estava comigo outro garoto, então eu disse:

- Esse é meu.

- Duvido você acertar, você é grosso!

Você é grosso! Essa frase me fez repensar na maneira que eu atirava. Eu sempre mirava o pássaro, mas a pedra sempre passava abaixo dele. Ao ouvir o barulho do estilingue, os pássaros imediatamente voavam. Estava aí o “pulo do gato”. Eu era bom no alvo fixo porque ele não voava. Foi o meu primeiro cálculo de “balística”, empírico é verdade, pois eu nem sabia que existia essa palavra. Fiz pontaria para atirar um palmo acima do alvo e quando soltei o elástico, o pássaro caiu ferido. Acertei uma de suas asas. Sempre ouvi canto de passarinho, mas choro, não. Aquela foi a primeira vez. Na hora chegou meu arrependimento. Não tive coragem de abatê-lo. O garoto o pendurou entre o arame farpado de uma cerca e, de perto, deu a estilingada. Penas voaram. A partir daquele momento o estilingue nunca mais ficou pendurado no meu pescoço. O remorso tomou conta de mim e quando fiz minha Primeira Comunhão, confessei que aquele tinha sido o maior pecado que eu tinha cometido. Não me lembro de qual foi a penitência, mas foram muitas orações. Desde o dia que feri aquele passarinho passei a protegê-los, mas o que fazer com os três que meu pai tinha em casa: um canário do reino, um avinhado (curió) e uma fêmea de curió. Infelizmente, eles continuariam engaiolados pelo resto de suas vidas, pois há muito não voavam e seriam vitimas de um gato se estivessem soltos. Isso me magoava muito. Os pássaros com exceção da fêmea eram excelentes cantadores. A fêmea estava tão velha que não aceitava o acasalamento com o macho que estava com um grande vigor. Chegamos a tentar cruzá-los, mas ele a maltratava, tanto era a sua “vontade”. Vivia junto ao arame e cantava para a fêmea, mas ela encolhida em suas próprias asas fazia de conta que não ouvia. Numa manhã, não me lembro de como isso aconteceu, ela fugiu e voou para uma goiabeira próxima e lá permaneceu imóvel. O avinhado não parou de cantar a manhã toda, era um canto de desespero que dava pena de ouvir. Deixamos a porta da gaiola aberta e no fim da tarde ela voltou para sua morada. O macho parou de cantar só nesse instante. Então compreendi que também os pássaros amam. Ele a amava sem nunca ser correspondido e quem sabe, talvez tenha imaginado que nunca a veria mais. Isso o torturou por um dia todo. Viveram o quanto tinham que viver e, infelizmente, morreram na gaiola pela própria idade. Será que essa prisão perpétua não foi um ferimento maior que aquela estilingada?

Os pássaros ficavam num pequeno terraço de casa durante o dia e à noite eram recolhidos para não serem atacados por gatos. Embora houvesse um cachorro, o Tufi, os gatos vinham pelo telhado onde cachorro algum iria pegá-los. Ao se alimentarem deixavam cair alpiste no chão e não faltavam pardais que vinham ali comer e na hora do almoço do cachorro, os passarinhos ficavam ao seu redor esperando por algum resto de comida. Quando o Tufi terminava a sua refeição, eles caíam brigando para pegar um arrozinho ou um feijãozinho. Passei a reservar um pouco de comida para os passarinhos que vinham comer na hora certa, era só eu assoviar para o cachorro e lá estavam eles também. Resolvi fazer uma experiência. Fiz uma arapuca e “cacei” alguns. Em cada um coloquei um anel de linha de bordar de diferentes cores e os soltei em seguida. Para minha alegria, eles vinham todo dia se alimentar e já ficavam piando na goiabeira antes mesmo de o almoço ser servido. Então, aprendi que se podem ter pássaros soltos desde que você os alimente. Eles não vão abandonar o pedaço, ou melhor, o território. Era isso que deveria ser feito lá naquele luxuoso cemitério.

Um dia, quando eu já era um rapaz, meu pai foi caçar pássaros com um amigo lá pelos lados de Juquitiba e trouxe um avinhado na gaiola. Notava-se que era ainda um pássaro jovem. Não deixei de fazer o meu “sermão”:

- Pai, o senhor tirou um passarinho da mata onde ele voava para onde queria, para deixá-lo aqui num espaçozinho desses. Há algum tempo os que tínhamos morreram e agora volta tudo novamente? Pensei que nunca mais veria gaiolas na minha casa.

No dia seguinte quando me pai foi por alpiste no coxo, assim que abriu a gaiola o avinhado fugiu.

- Passou por entre minhas mãos, disse ele, e ele estava tão quietinho que nem imaginei que poderia se espantar.

- Pai, acho que ele se assustou e, naquele impulso de voo, teve a sorte de ir em direção à porta que estava aberta, não era mesmo para ele ficar preso.

Essa passagem marcou bem a minha vida. Eu não estava presenciando, mas sinto ainda que uma força misteriosa de minha parte o assustou. Como eu queria tê-lo visto em liberdade, mas vi foi o semblante de despontamento de meu pai. Nunca mais tivemos pássaros.

Passaram-se muitos anos, cresci, casei e tenho um filho. Quando ele era criança e frequentava o jardim da infância, numa noite chuvosa, apareceu na janela do quarto dele a silhueta de um pássaro e ele me chamou para mostrar. Como a luz do quarto estava apagada, a luz que vinha de fora não permitia que o pássaro visse dentro de casa. Eu me aproximei e com as mãos em concha envolvi o passarinho. Naquela hora tomei a maior bronca do meu filho:

- Eles são amiguinhos, solta ele.

- Eu não o estou machucando, ele é ainda um filhote, veja a cera no bico dele. Vou deixá-lo aí. Talvez a mãe dele venha buscá-lo. O filhote ficou imóvel, mas minutos depois já voara. Fiquei contente com aquela bronca, pois vi que meu filho estava sendo educado ecologicamente.

SANTO BRONZATO
Enviado por SANTO BRONZATO em 28/09/2012
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