SOB OS ANDRAJOS IX - VERNIAUX (O velhinho dos milagres)
Parece que estou vendo. Se soubesse desenhar, seria capaz de reproduzi-lo tal qual ele era: Velhinho, apoiado a uma bengala toda enfeitada de medalhas de santos e fitas coloridas; calça com as pernas um pouco arregaçadas, um paletó sem camisa que usava diariamente e a clássica gravata que nunca esquecia; gostava também de um chapéu que exibia de vez em quando. Pela fisionomia, via-se que era uma pessoa sofrida. Tinha os cabelos ralos e quase aos ombros. Trazia no semblante os sulcos deixados pelas intempéries, que a rudeza da vida lhe causara. Andava devagar, esboçando, às vezes, gemidos de cansaço. Assim se apresentava nas suas andanças pelas ruas, a fim de angariar alguma esmola com que pudesse sobreviver.
Um dia, vi-o caído em uma coxilha em frente à minha casa. Deitado de bruços, mais parecia um amontoado de lixo, misturado às folhas dos benjamins, areia e papéis velhos trazidos pelo vento. As crianças que o rodeavam puxavam sua gravata, escondiam os chinelos e o chapéu, com um desrespeito desumano para vê-lo espantá-las com a bengala enfeitada de fitas coloridas e saírem correndo na maior algazarra. Pessoas que passavam diziam que estava bêbado, que era costume, de vez em quando, tomar um pouco de pinga. Naquele dia, porém, havia extrapolado na dose cujo efeito deixara-o naquele estado miserável. E ali permaneceu até que passasse todo o mal estar que o porre lhe causara.
Quando faço um retrospecto à fase azul da minha infância, vou ao encontro dos amigos e amigas com quem dividi momentos agradáveis e inesquecíveis de brincar com bonecas, de cirandas, de contar histórias, de estudar no educandário, como também na fase cor-de-rosa da adolescência, de passear nas pracinhas, encontrar com o namorado, ir raramente aos bailes. Não esqueço ainda, das pessoas que, por descaso ou preconceito, permaneciam à margem da sociedade, entregues à sua sorte.
Verniaux era mais um de quem não se sabia a origem, apesar de carregar um sobrenome francês. Morou algum tempo, talvez por caridade cristã, na residência de Dª Marieta, uma digna senhora de minha cidade. Era eu ainda criança, quando o conheci, mas nunca tive medo dele, como acontecia com muitas outras crianças da minha terra. Tinha até um pouco de compaixão em vê-lo maltrapilho e tão maltratado. Havia uma doçura inexplicável no seu olhar, o que me dava a entender que era uma pessoa bondosa. Uma vez, nas minhas fantasias de criança, ao vê-lo andando devagar e apoiado à bengala, com aquele olhar triste, de sofrimento, associei-o à imagem do Bom Jesus de Passos na quinta-feira Santa. E essa visão nunca mais me saiu da memória. Em 1952, tive que me ausentar da minha terra por motivo de estudo, indo para um colégio interno. Não mais o vi. Lembro que trazia um rosário ou terço em volta do pescoço, como demonstração de que lhe restava a fé como porto seguro na sua íngreme e ingrata vida.
Em um tempo não preciso, mais ou menos na década de 1950, soube que havia morrido. Daí então, segundo depoimento de uma boa parte de meus conterrâneos, inúmeros são os favores que tem prestado em nome do Senhor Jesus, a quem lhe solicita a intercessão junto aos céus. Está na hora, portanto, de demonstrarem sua gratidão pelos benefícios recebidos. Quem sabe, o Verniaux, com suas virtudes iluminadas pela fé, não seja mais um predestinado à honra dos altares?
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Maria de Jesus. Fortaleza, 28/09/2012.