__________________nada mais
(...) tem que matutar, rapaz.
Tem que matutar muito.
Se quiser ser bom de verdade,
tem que matutar.
Tem que sonhar.
" Rabiscos são a prova concreta de que o pensamento ocorreu. "
( Refletiu. Repensou. Desistiu. Renovou. Rabiscou. Reescreveu. )
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Às vezes, têm-se a impressão de que tudo que era para ser dito, já foi dito. E que o dizer contemporâneo não é senão, um insistente devaneio de alguém muito teimoso tentando discorrer sobre a vida com palavras novas. Talvez, somente para substituir as antigas, aquelas que deram origem a tudo.
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Abandonou a máquina de escrever. Aquele instrumento era completamente desnecessário para o ofício que ele iria realizar.
Relembrou fatos da vida.
[ Relembrar é como abrir a tampa delicada da caixinha de música, ouvir a melodia tocada - tantas vezes antes - e emocionar-se sem saber porquê. É como se nos intervalos do compasso dessa música houvesse outras melodias escondidas, interconectadas. De modo que ao escutar a primeira, lembra-se de outras também. Músicas que remetem a momentos vividos e aparentemente sem relação alguma. Que passam instantaneamente na mente, como flashes. Uma mesma canção que lembre do primeiro livro lido na infância; do primeiro beijo dado na garota; de um fim de tarde como tantos outros, mas que sabe-se lá Deus porquê, ficou gravado na memória; de um chocolate quente na caneca. Lembranças que chegam, hospedam-se, vão embora e um dia, quando menos se espera, retornam para a sua verdadeira morada. ]
Pôs-se a escrever. Da maneira clássica.
Escrivaninha antiga, rústica, envernizada, forrada com veludo verde sob o vidro milimetricamente encaixado. Cadeira antiga, também envernizada, mas com os pés gastos e um tanto bamba (fazendo barulho de madeira roçando uma na outra). Luminária cinza-fosco com interruptor de clique e uma luz similar àquela do Sol de seis e meia em período de inverno: amarelo apagando. Papéis-almaços. Três deles em branco e um já rabiscado e manchado de café, fruto da noite insone do dia anterior. Um lápis preto simples, pela metade, com a ponta arredondada, precisando ser apontado. Borracha? Onde ela estava? Ontem à noite havia sido deixada ao lado da luminária. Procurou embaixo da escrivaninha, mas viu apenas seus pés calçados com meias pretas. Fazia frio, bastante frio.
Levantou-se da cadeira. Puxou as meias até a altura das canelas, equilibrando-se em um pé de cada vez. Ajoelhou-se. Agora curvado, procurou com os olhos, de ponta a ponta, a borracha debaixo da cama. Nada encontrou.
Ficou um tanto irritado. Afinal, borrachas só servem para cair, não fazer barulho ao tocar o chão e quicar sem rumo até sumir.
Desistiu de procurá-la.
[ Os sonhos sempre vêm à mente quando se está escrevendo. Pelo menos, pode-se dizer isso das pessoas que ainda sonham. Não das outras. As outras apenas escrevem, utilizando símbolos (essas chamadas letras) corridos, em linguagem apressada, quiçá, desprovida até da harmonia essencial na junção da sentença poética. ]
Sobre sonhos é algo bom para escrever, pensou.
Sentado na cadeira, ficou perplexo observando as linhas da folha em branco. Repentinamente, sentiu-se triste.
Era deprimente toda aquela "brancura virgem" do papel, ansiando pelo deslizar do grafite de seu lápis, pela poesia vindoura.
E começou a escrever:
SONHAR
Sonhar é querer alimentar a vida
Outrora esquecida pela triste mazela
Originada desse tal destino, dono do ser
Dono da vida. Sim! Dono dela
É despertar pela manhã com fé
Apagar o ontem, agora passado
Deixá-lo escondido sob o tapete
Encoberto e impossível de ser libertado
Relembrar da infância e da saudosa inocência
Dos porquês perguntados
Do desejo de crescer e de ser
Jogador de futebol, astronauta ou geólogo aposentado
Sonhar é escrever tudo isso
Que em mim tanto bate
Invade e pulsa
É gritar pra Deus e o mundo:
Eu quero o meu sonho.
Me deixa tentar!
Abraça-me mundo
Pois não sei bem o que tanto dizer
Não sei é sonho ou se é fogo de palha
Só sei de uma coisa:
Escritor eu vou ser.
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Rabiscou muito até chegar ao final da poesia, afinal, a borracha estava desaparecida. Aqueles versos não eram tão admiráveis. No entanto, após escrevê-los sentiu a sensação de que um peso de suas costas havia sido tirado.
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Naquele momento da vida, ainda vivia numa espécie de realidade fantástica, repleta de dúvidas, das mais variadas possíveis. Dúvidas que o acompanhavam dia após dia e noites afora. Indagações sem hora para chegar, como nas noites em que tomava um chope no bar do Largo; quando descia a rua de casa; ou quando dormia um meio-sono no ônibus, após o trabalho.
Ele só queria ser escritor.
Amaria, se caso um dia, toda aquela prosa poética que dominava seu pensamento e seu coração fosse transmitida - como que por osmose - para as páginas de um livro, escrito pelas suas próprias mãos. Poderia morrer feliz nesse dia, como diz o ditado.
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Já era bem tarde, ou melhor, "bem noite". O momento exigia um café quente para abrir seus olhos, "desfumacear" a mente e mantê-lo vigilante, à espreita esperançosa de capturar os versos, que tanto buscava teimosamente.
Tomou o primeiro gole. Tomou o segundo. Acendeu um cigarro. Apagou a luminária. Ficou ali, sob a luz única daquela brasa se desfazendo a cada tragada.
[ Apagar a luz faz com que o ser pense melhor.
É como desligar a TV para ler um livro.
Aumenta a concentração.
O escuro acalma e relaxa. ]
Apagou o cigarro com a ponta do dedo indicador molhado com saliva. Agora estava no breu danado, pensativo.
Não. Poesia não, refletiu. Iria escrever um livro de duzentas e quarenta e quatro páginas, pois escritor bom é escritor de livro grosso, com muitas laudas.
Foi até a sala e pegou as últimas caixas com blocos de papel-almaço que tinha. Sentia que a inspiração estava próxima, tocando-lhe os pés e ascendendo até a sua cabeça. Lembrava do vermelho-fogo da brasa do cigarro brilhando em seus olhos, do momento em que ouvira um cachorro dar alguns latidos na rua e do silêncio completo seguinte. Agora estava de olhos fechados, corpo e mente sã, relaxados. Quase num estado de sonolência consciente ou numa espécie de transe.
Sentiu seus dedos formigarem de forma intensa e seu pensamento acelerar de uma maneira nunca antes experimentada, nem mesmo no dia mais eufórico de sua vida. Com o polegar opositor segurou firmemente o lápis e deu vida à primeira linha, bem como para as linhas seguintes. E assim foi compulsiva e cronologicamente:
1:56 - 31 páginas escritas;
2:34 - 59 páginas;
3:49 - 82 páginas;
5:37 - 157 páginas;
8:15 - 192 páginas;
10:07 - 244 páginas.
10:09 - O último parágrafo.
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Estava completamente exausto. Aquilo mais pareceu uma sessão de psicografia que produção literária, tamanha a agilidade com que duzentas e quarenta e quatro páginas foram produzidas. Não se recordava com clareza acerca do que havia ocorrido. Lembrava apenas que repetia para si mesmo: " Tenho que escrever duzentas e quarenta e quatro páginas, tenho que escrever duzentas e quarenta e quatro páginas, tenho que escrever... ".
Olhou bem para aquele material às pilhas na sua frente e decidiu analisá-lo. Sua curiosidade sempre fora maior que a preguiça, e por isso, mesmo "podre de cansaço", optou naquele momento por iniciar a leitura da obra que havia criado durante a madrugada e o nascer da manhã.
Era tudo extremamente fascinante. O discurso metalinguístico abordava assuntos como o realismo fantástico, a influência dos sonhos na vida do homem e o poder do imaginário. O linguajar era envolvente, claro e conciso. Parecia ter sido escrito realmente para ele, mas não por ele. A obra estava além da sua capacidade reconhecida de produção literária e de conhecimento de vida. Era improvável, impossível ter feito aquilo, tanto técnica como temporalmente.
Leu as primeiras cem páginas do livro tão velozmente quanto as escreveu. Fazendo uma espécie de leitura dinâmica, ainda com resquícios visíveis daquela espécie de transe que passara, chegou ao capítulo final, cujo desfecho era fundamental para a compreensão não só dos capítulos anteriores, mas principalmente do título da obra, que era um tanto curioso e enigmático.
Iniciou então a leitura do último capítulo, que começava da seguinte forma:
" O ser humano possui uma pequenina percepção acerca das circunstâncias vivenciadas diariamente. Desconhece sua própria maneira de pensar, sua identidade, tornando-se com o passar dos anos uma espécie de museu abandonado, que apenas dá morada às belas obras da vida, mas não as restaura quando necessário. O homem vive sob a égide (...) "
TIC-TAC, TIC-TAC, TIC...
BAMMMMMMMM!!!
O relógio despertara.
...
O pescoço estava dolorido e a jugular pulsava, pressionada. A face direita amassada e o olho direito impossibilitado de ver as coisas, pois estava em contato com as folhas de papel almaço. A boca seca, o mau hálito de café passado, as folhas babadas.
Tentou abrir o olho esquerdo, ainda colado e com a visão embaçada.
Levantou-se da cadeira todo dolorido e com cãibras em quase todo o corpo. Olhou no relógio, que ainda ressoava um "bammmmm": dez da manhã.
Putz! Pensou ele. Esqueceu-se de girar a rosquinha do despertador para o ponteiro das sete na noite passada. Costumava acordar às dez horas aos domingos. Era segunda-feira. Dia de trabalho intenso e muita entrega de pedidos na gráfica. Seu chefe iria lhe cortar a garganta pelo imperdoável e longo atraso. Pegou o relógio na mão e lá estava a borracha, atrás do despertador.
Por um momento sentiu-se confuso por tudo aquilo que havia acontecido. Não sabia se havia sonhado, delirado ou se tudo fora realmente verdade.
Provavelmente não. Já que na mesa da escrivaninha estava apenas a mesma folha rabiscada da poesia "SONHAR".
[ Quando se desiste de um sonho,
dificilmente ele se concretiza miraculosamente.
Pobres céticos
que não se deliciam com a beleza de sonhar.
Quando se deixa de sonhar,
não se faz mais necessária a vida.
Tudo é apagado...pela borracha da descrença.
Sonhos exigem esforço. Constroem-se aos poucos.
A vida dispensa atalhos.
Ela almeja os longos, e às vezes tortuosos caminhos. ]
...
Passou a borracha na poesia. Apagou o sonhar.
Lavou o rosto, escovou os dentes e observou as olheiras, companheiras constantes do seu rosto marcado. A barba por fazer.
Vestiu o terno mal passado, protegeu o pescoço dolorido com o cachecol e colocou uma touca. Requentou o café. Deu apenas um gole. Estava terrível o gosto. Foi trabalhar.
A passos tristes caminhava nas calçadas de paralelepípedo. O olhar baixo, as olheiras incomodando. E agora uma baita dor de cabeça que latejava o cérebro lá no fundo. Ressonava. Algo ressonava em sua mente, causando-lhe tontura e a sensação de que o mundo circulava dentro de seu crânio...
(...) tem que matutar, rapaz.
Tem que matutar muito.
Se quiser ser bom de verdade,
tem que matutar.
Tem que sonhar.
Ele só queria ser escritor.
Nada mais.