O grito
Como sempre, comprei o amendoim, "três por um real!"
O amendoim torrado me faz refletir, enquanto caminho por entre as ruas do centro de Niterói à noite me pergunto: - por quê é simplesmente impossível resistir ao apelo de tantos vendedores ambulantes, que disputam palmo a palmo as milhares de pessoas que passam, todas apressadas, a maioria indiferentes àqueles seres que parecem únicos e ao mesmo tempo parecem multiplicar-se como longos tentáculos ao longo do caminho?
Quem sabe seria apenas uma forma inconsciente de tentar inserir-se de algum modo em todo esse contexto de rostos e rostos e mais rostos, que parecem-se todos na mesma angústia, no mesmo nada, na mesma monótona e mecânica incapacidade de perceber ao menos por um momento qual a sua real importância naquela paisagem sórdida, insólita, envolvente, tumultuada e estúpida de milhares de seres passando apressados, atravessando, correndo, parando, consultando o relógio em vão por já estar atrasado, esperando de novo o semáforo abrir?
É assim que ouço mais um grito que vem do monturo, da balbúrdia, do espalhafato de gente, do gigantesco circo humano que se forma pouco a pouco a céu aberto, diante do trânsito parado, as buzinas inclementes, os motoristas à beira de um ataque de nervos, avançando sinais, parando em cima da faixa de pedestres; alguém reclama, o outro xinga e os camelôs simplesmente preenchendo o que restou do vazio da alma de alguém, mais uma vez, mais um grito repetitivo, mais uma tentativa de vender alguma coisa que garanta o pão de cada dia ou apenas justifique o fato de permanecer ali parado fazendo parte do incrível mosaico de gente.
Por essas ruas sigo eu, passos rápidos entre os mínimos espaços que restam, travessia infernal entre prédios envelhecidos, gente que vem e que vai e mercadorias que poucos querem ou precisam, mas ainda assim compram; compram por impulso, compram por puro sentimento de remorso, compram por pretender ajudar, quem sabe, alguém que precisa; compram por comprar, compram sem pensar, compram sem poder, mas ainda assim compram. E os gritos multiplicam-se, como uma bem ensaiada orquestra de vozes anônimas e incômodas, como um inconveniente e invencível exército de grilos dentro de casa no meio da noite: - Da Tim, da Claro e da Oi, vai com crédito, vai com bônus!, - olha a cerveja gelada! - olha a camiseta barata! - olha a jujuba, é quatro por um real!; - o bombom é só aqui, o bombom é da garoto! - olha isso!, - olha aquilo!; - tem guaravita, tem água, tem h2o, tá tudo geladinho!, - olha o salgado, - olha a mariola, olha aqui que hoje tá barato, gente! - olha o amendoim, olha o amendoim, olha o amendoim...ooooolha o amendoiiiiim! e os gritos seguem, de certa forma praticamente inaudíveis, pois já há muito ninguém se importa...
De repente, num momento de epifania, como bem o teria Clarice Lispector, segundo a minha professora de Produção Textual, Kelly, me recordo de que preciso fazer uma redação sobre o quadro "O GRITO", de Edvard Munch, e então me assusto:
- Estou dentro do quadro!
Nesse mínimo momento de transe, a avenida principal de Niterói, a Visconde de Rio Branco, é uma imensa ponte de concreto rígido e inabalável, ligando dois pontos muitos escuros, dos quais não nota-se o horizonte, e onde estou sózinha, mesmo em meio à multidão, sózinha. Olho em volta, e certifico-me, pois não parece possível, mas é verdade: não existe ningúem mais ali, a não ser dois impassíveis guardas de trânsito que caminham ao longo desta ponte imaginária como se nada à sua volta estivesse acontecendo; submersos em suas indiferenças, limitados em seus uniformes, simplesmente cumprindo seu horário de trabalho, sua obrigação, sua parte que lhes toca dessa vida; e não os culpo, pois entendo que eles também estão sós, nessa ponte. Nesse instante catastrófico, de silêncio absoluto da alma e incapacidade total de ser ouvida em meio ao caos urbano ao meu redor, levo as mãos aos ouvidos, e numa necessidade louca de ouvir-me a mim mesma após ter a mente bombardeada continuamente por brados allheios ao longo de muitos e muitos anos, finalmente ouso levantar o meu próprio clamor: mágico, insano, absurdo, tático, cruel, consistente, antiestático, e ainda assim um simples grito, de mero desabafo emocional.
Os céus cinzentos da cidade se abalam. Não há nada mais poderoso que um recém alforriado grito interior. Cores se misturam em formas já não tão rígidas e já pouco importa estar só em meio a tudo; volto numa fração de segundo à realidade, e faço questão de incorporar a minha voz a essa humilde sinfonia niteroiense, onde todos emprestamos os nossos sonhos a esse contínuo alarido de uma forma ou de outra; onde todos fazemos parte desse ir e vir, da rotina do dia a dia, do contexto da cidade, onde estamos todos de algum modo juntos reescrevendo a história, a nossa história, enfim, onde somos inegavelmente os sons da natureza moderna.
Inspirado no Quadro "O GRITO"
de Edvard Munchen
Trabalho de Produção Textual
Curso Letras-Inglês 1o. periodo
Universidade Estácio de Sá
Niterói - RJ