SOBRE OS ANDRAJOS VII - CLEMENTINA
Chamava-se Clementina. Era também conhecida como Tina. Durante muitos anos lavou a roupa da casa da minha mãe. Era costume, na minha terra, não ser feita essa tarefa em casa, principalmente se não tinham empregada doméstica. A roupa era lavada por uma lavadeira e engomada por uma engomadeira. Viu que mordomia? As duas eram contratadas individualmente por tempo indeterminado, porém o pagamento era feito ao terminar o trabalho, na hora da entrega. Minha mãe só tinha mesmo o luxo de pôr a roupa dentro de um lençol, contar as peças, colocar uma barra de sabão no meio e fazer uma trouxa, amarrando as pontas. E lá ia a Tina, nas primeiras horas do dia, com a imensa trouxa na cabeça, rumo à Represa do Mirim.
Quem conhece minha terra, deve ter ido àquele pedaço de paraíso que surgiu das águas represadas de um açude. É uma dádiva da natureza enviada pelo Acaraú-Mirim. Restaurantes e lanchonetes foram construídos à sua margem. Antigamente era só um tranquilo reservatório d'água que se perdia no horizonte, onde pessoas gostavam de banhar-se e passear em canoas que raramente apareciam. Diziam até que do outro lado da represa, começa um caminho que vai chegar às Indias. Verdade? Não sei.
Às margens, sob o calor de um sol abrasador, as lavadeiras efetuavam o trabalho, cantando, conversando, esquecendo-se das horas que corriam lentas até chegar o momento de retornar à cidade. Faltando pouco para a Ave-Maria, quando o sol espalha seus últimos raios por sobre as águas, elas voltavam com suas trouxas na cabeça, elegantemente felizes por mais um dia de trabalho. “Humilde, sim, mas digno”, dizia Tina. Lembro quando chegava, à tarde, com a roupa cheirosa ainda quente do sol, jogava a trouxa sobre a cama, desamarrava as pontas, espalhava e conferia as peças: _ Taí sua roupa. Venha ver se tá do seu gosto.
Tina era uma mulher de meia-idade. Sofria à ação dos radicais livres. Tinha a pele tostada de sol, desidratada, já envelhecida por falta de tratos. Suas roupas eram simples, geralmente de chita estampada e usava mangas compridas, talvez para evitar queimaduras solares nos braços. O cabelo, liso, preso em forma de cocó, era sapecado pela ação do calor. Seu corpo magérrimo mantinha certa elegância no andar, pelo contínuo exercício de aprumar a imensa trouxa sobre a cabeça, numa caminhada de 01 quilômetro.
Quase não se sabe do seu passado. Através de minha avó paterna, fiquei sabendo que era casada e que tinha um filho, já adulto. Tivera a criança na beira d'água enquanto lavava a roupa. Deste, ninguém sabe falar. Nunca o vi. Tenho apenas uma opinião formada a esse respeito: Como filho adulto, tinha obrigação de zelar pela mãe, ajudá-la a ter uma vida mais tranquila, mais fácil, já que o peso dos anos e o desgaste do trabalho árduo, não lhe ofereciam condições para lutar pela sobrevivência. Afinal, foi por ele, pelo seu desenvolvimento que batalhara com toda a coragem de uma guerreira.
Clementina foi mais uma heroína dos campos escabrosos da vida em que a ironia do destino cai de cheio, destruindo sonhos, deletando ideais, deixando marcas profundas na alma que se multiplicam, impiedosamente, nos rostos envelhecidos.
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Maria de Jesus. Fortaleza, 26/09/2012