Minha vida como surda unilateral
(Flavia Costa)

 

Amanhã (26/09) é o Dia Nacional do Surdo. A data me lembrou que, no começo deste mês, fez 14 anos que fui acometida por surdez súbita, um presentinho, sem dor, sintomas ou causa definida, que a vida me mandou cinco dias antes do meu aniversário de 20 anos. Desde então, sou surda unilateral, o que significa não ouvir nadica de nada com o ouvido esquerdo.

Pois é, desde esse dia, o meu ouvido direito tem sido o meu “braço” direito para assuntos de audição. É claro que, se pudesse escolher, gostaria de escutar com os dois ouvidos, mas sou grata por ter meu “braço” direito funcionando com 100% de sua capacidade, o que faz com que, muitas vezes, escute melhor que pessoas não deficientes. Mas se todo mundo nasce com dois ouvidos é porque eles são necessários, e pessoas com surdez unilateral enfrentam algumas dificuldades: o surdo unilateral não consegue identificar a direção do som, tem dificuldade em conversar em locais com muitos ruídos e, aqui falo por mim, ficam irritados em locais com muito barulho e gente conversando, e podem ser acometidos por torcicolo por ficar virando o rosto para tentar escutar o interlocutor.

Apesar dessas dificuldades, eu me adaptei bem a minha vida com apenas um ouvido, e até esqueço que sou surda. Apesar disso, evidente que, às vezes, passo por situações constrangedoras, engraçadas, e outras que dependendo do meu humor me deixam um pouco irritada.

Aqui em casa mesmo, procurando por algum familiar, chamo pelo nome, e a pessoa “escondida” em algum cômodo responde apenas: - tô aqui –, eu identifico que o som veio lá do quintal, e vou lá fora procurá-la, chego lá e nada, aí penso comigo, ah ouvido danadinho me enganou de novo né, e volto para dentro de casa rindo. Outras vezes, na mesma situação e, com um humor um pouco pior, só respondo: - tô aqui não é resposta, em que cômodo você tá? – mas como, normalmente, sou bem-humorada e esqueço o detalhe da surdez, na maioria das vezes acabo mesmo é fazendo uma caminhada até o quintal.

Por conta dessa dificuldade em identificar a direção do som, certa vez no trabalho, eu estava passando por uma espécie de corredor, e havia dois colegas, um de cada lado, há cerca de três metros de mim e um deles começou a conversar comigo. Eu virei para o que estava a minha direita, achei estranho que apesar de continuar ouvindo a voz, a boca do cara não se mexia, então, virei para o que estava à esquerda, que me olhava com uma cara de interrogação. Caí na gargalhada e como ele sabia do meu problema entendeu a situação.

Eu não escondo a minha dificuldade auditiva, faço questão que as pessoas com quem convivo no dia-a-dia tenham conhecimento dela, pois, muitos, por não saberem acabam achando que sou idiota ou metida. Um colega de trabalho, que via eventualmente, pois ele trabalhava em setor diferente, uma vez, chamou-me enquanto eu prestava atenção em algo que acontecia há uns dez metros de distância Normalmente eu escutaria, mas hoje para ouvir do lado esquerdo uso não só o ouvido direito, como também a minha atenção. Como eu não ouvi, ele comentou com alguém que estava do lado: - a gente chama a Flavia e ela finge que nem escuta –, bem na hora eu me virei, não ouvi tudo, mas perguntei o que estavam falando de mim. Não fiquei com raiva ou chateada, expliquei a situação para ele que pediu desculpas dizendo que não sabia.

Durante a faculdade, uma das minhas amigas, rapidamente se acostumou com minha dificuldade auditiva, acho que ela lembrava mais do que eu, e era engraçado. No burburinho do corredor, ela sempre andava do meu lado direito, eu nem precisava mudar de posição, o que faço com a maioria das pessoas. Dentro da sala de aula, quando queria provocá-la, sentava do lado direito em que ela  estava, e ela dizia: – não, senta desse lado, e se eu quiser falar com você? – eu dizia: - você pode falar a vontade, eu só não vou escutar. Achava muito legal a maneira que ela lidava com minha deficiência, mas coitada, segundo ela, de tanto andar do meu lado direito, começou a ter dificuldades de andar do lado esquerdo de outras pessoas.

Conversar em uma rua movimentada ou em um local com muito barulho para quem não é deficiente já é difícil, imagina para quem escuta só de um ouvido. Em situações assim eu até tento ouvir e fazer leitura labial ao mesmo tempo, mas nem sempre é possível o sucesso. Então, eu pergunto o que a pessoa falou, olhando para a boca dela e, não entendendo de novo, pergunto mais uma vez, e o que acontece: novamente não entendo bulhufas. Eu me recuso a perguntar de novo, duas vezes é minha cota máxima. Aí uso um truquizinho que, normalmente, dá certo: eu dou um sorrisinho e balanço a cabeça fingindo que estou entendendo. Pronto, a pessoa nem percebe que não ouvi uma vírgula. Taí uma dica para ouvintes e não ouvintes. Se der certo, depois me conta.

Locais com muitos ruídos, geralmente, deixam-me irritada, some esse ambiente e duas pessoas tentando conversar comigo ao mesmo tempo, resultado: descontrole emocional. As pessoas me consideram uma pessoa educada, mas certa vez, após uma reunião de trabalho com a sala cheia de gente falando, alguns decibéis acima do convencional, estava em um canto conversando com um colega e veio outro falando ao mesmo tempo, eu não conseguia prestar atenção em nenhum dos dois. E numa atitude pouco comum dei um grito, eles ficaram me olhando assustados, até eu me espantei, mas se não tivesse feito isso acho que teria surtado.

Mas apesar desses inconvenientes, a surdez unilateral tem lá suas vantagens. Alguns comentários maliciosos de engraçadinhos no meio da rua, quando falados do meu lado esquerdo passam totalmente inaudíveis. Dormir com temporal, fácil, é só deitar sobre o  lado direito e o temporal vira uma chuva distante, o mesmo artifício vale quando o vizinho dá uma festa até altas horas e eu durmo tranquila sem escutar nada. E claro, a surdez sempre pode ser uma desculpa quando alguém fala alguma coisa e você, mesmo tendo escutado, quer fingir que não ouviu. Mas essa aí é segredo, não conta para ninguém tá.

Como pode perceber, apesar de alguns inconvenientes, levo uma vida normal. Diria até que, sem óculos, a minha miopia de 2,5 graus me limita mais que minha surdez. Mas, quero alertar que surdez súbita é considerada urgência médica, e caso perceba alguma dificuldade auditiva procure imediatamente um hospital e cobre o atendimento. Casos de surdez súbita, como o meu, nem sempre vêm acompanhados de sintomas de dor ou sangramentos. A rapidez no atendimento é fundamental, e pode reverter um quadro que, se não tratado prontamente, poderá mudar a vida para sempre.


Observações:
A pessoa que perde a audição de um dos ouvidos, de repente  e sem sintomas, nem sempre consegue perceber que ficou surda, por isso, é importante ficar atento a algumas sensações: percepção de pressão no ouvido semelhante à de quando viajamos, escutar a própria voz dentro da cabeça. Na dúvida tente escutar ao telefone testando os dois ouvidos.