INTERROGATÓRIO: ELA É DONTE OU MENTIROSA?
Numa delegacia do interior o policial entreabre a porta do gabinete:
- Doutor...
- Pois não...
- A testemunha está aí...
- A do caso do estupro seguido de morte, lá da chã?
- Sim senhor...
- Ainda bem que veio. Já ia mandar conduzir essa pilantra. Tô achando que ela tem interesse no negócio. Porra, velho, já intimei ela duas vezes, liguei, mandei um policial lá e nada dela aparecer!
- Parece que ela tem um problema de saúde, doutor...
- Que problema? Cadê o atestado? Eu perguntei a ela quando liguei; ela só disse que era doente, mas não disse a doença, se recusou; assim dificulta...
- Pode ser uma doença íntima, doutor: pinga-pus, hemorroidas, caganeira, xanha, corrimentos...
- De qualquer modo ele tinha que dizer; o negócio é sério, porra; é caso de estupro!
Lá fora, a indigitada testemunha aguardava. Tinha um terço nas mãos, o rosto enfiado no chão. Parecia muito aflita. Um policial passou, olhou-a de viés, meio puto, e seguiu. A escrivã também passou, e, vendo-a naquele estado de ansiedade, apiedou-se da coitada – como se mulher fosse classe unida...
Ajoelhou-se frente a ela e indagou:
- Que foi que houve? Algum problema?
- Não.
- Você é a testemunha do estupro, né?
- Sou sim.
- E por que você não veio antes, minha filha?!...
- É que eu sou doente.
- De quê? Diga pra mim, que também sou mulher...
- Eu não queria falar disso...
- Então tá bom. Mas o delegado já tá pensando que você tem interesse em que o caso não seja resolvido... Acha que você conhece o estuprador ou alguma coisa assim...
- Deus me livre, eu juro que não! Eu só tava passando e vi a cena; me escondi no mato para não ser vista, depois saí correndo. Veja, se fui eu quem disse do caso à polícia, por que teria interesse?
- Pois é... Mas não está parecendo...
Durante esse diálogo, principalmente na parte em que a testemunha se defendia, a escrivã poderia jurar ter ouvido pequenos barulhos, muito estranhos, como roncos, fala de porco, ou algo parecido...
Bem, mas o fato é que na sala do delegado tudo estava pronto: a escrivã encerrara a conversa e já estava em seu posto; num canto, um policial assistia a tudo.
- Escrivã, mande entrar a testemunha.
- Sim senhor.
A pobre-coitada entrou. Sentou-se, muda, cabisbaixa, e esperou. Depois de preenchida a identificação, registrados os compromissos legais etc., o delegado mandou brasa:
- Minha filha, nós vamos bater um papo, informalmente, e só depois eu vou mandar o escrivão digitar, entendeu?
- Sim senhor.
- Bom. Primeiro, eu quero saber por que cargas d’água você não veio antes, quando eu lhe intimei duas vezes, liguei, mandei um policial e tudo?
- É que eu tive medo porque tenho um problema de saúde; só isso doutor.
- E que raio de problema é esse?
- Eu prefiro não comentar. Agora já estou aqui.
-Tudo bem. Vamos lá. Mas fique sabendo que você não me convenceu com esse papo de doença que não existe...
- Existe doutor, eu juro, só não posso dizer...
- Então pra mim não existe. Eu já começo esse negócio desconfiando de você.
- Não doutor, eu juro!...
- Pode jurar mil vezes: sem atestado nem nada sua jura não vale um tostão. Você se escondeu, saiu de banda, e ponto.
- Mas...
- Nem “mas” nem meio “mas”! Vamos ao que interessa. O que você fazia no local do crime?
- Eu estava indo para casa...
- Pelo mato?...
- É um caminho mais curto; é que eu tinha pressa.
- Por quê?
- A janta tava atrasada.
- Mas eram só quatro e meia da tarde!
- Sendo que é tempo seco, doutor. A macaxeira é dura; demora pelo menos hora e meia pra cozinhar direito...
- Certo, vou fazer de conta que acredito.
- Mas é verdade...
- Ok... E então, o que aconteceu?
- Foi assim: eu ouvi um gemido perto da plantação de macaxeira. Então fui ver ser era uma criança ou alguém passando mal...
- Ummm... Quer dizer que o gemido de uma criança é igual ao de alguém passando mal...
- Não sei...
- Eu também não. Prossiga.
- Bom. Então eu cheguei perto e vi aquele homem montado na mulher...
- E o que você fez?
- Eu fiquei com tanto medo que me acocorei e esperei ele ir embora...
- E por que não voltou por onde veio?
- Eu não sei, tive medo...
- Historinha mal contada, ein...
- Mas foi assim doutor.
- Prossiga.
- Então eu ouvi o barulho de tiro...
- Mas ela levou três tiros...
- Eu só lembro de um...
- Ummm... E?
- E então e ouvi os passos dele saindo e vim correndo pra delegacia.
- E como era esse homem?
- Não vi, doutor.
- Como não? Você acabou de me dizer que viu o salafrário em cima da menina!...
- Sim, mas de costas, e só dava pra ver a... a bunda dele...
O policial quase riu. Prosseguiu o delegado:
- E como era a referida bunda?...
Desta vez o policial não resistiu e soltou uma leve risada. A escrivã indignou-se, mas se manteve calada.
- Ela ira igual às outras...
- E por acaso você conhece as bundas de todo mundo pra dizer que elas são todas iguais?...
- Não doutor...
Mais uma vez o policial sussurrou, travou só meio riso, e a escrivã franziu a testa.
O delegado, solene, disse:
- Tudo bem, esqueça...
A testemunha se angustiava cada vez mais. Sentia-se ridicularizada, claro, mas nem ligava tanto; temia mesmo ser indiciada, presa etc. O pequeno terço sofria, torturado entre seus dedos, e ela começava a transpirar. Em meio àquilo, a escrivã mais uma vez jurou ter ouvido aqueles barulhos esquisitos. Estranhava que o delegado e o policial não ouvissem também, embora fossem discretos – os barulhos, não os dois machistas. E o depoimento prosseguia, sempre com a mesma perseguição, desconfianças, perguntas dúbias e cheias de segundas intenções. Os barulhos ainda rugiam, ia e viam, seguiam a tensão dos diálogos – pelo menos aos ouvidos da escrivã. Por que não os ouviam os outros dois? Talvez estivessem demais atentos em cercar a testemunha, em lhe arrancar uma verdade que presumiam. O fato é que a testemunha se sentia acurralada; sentia sua palavra sem crédito nenhum, embora estivesse sendo absolutamente sincera. Começava a se perder, a entrar numa de incompreensão, chegando a duvidar de si mesma, a alterar sua autoimagem, a se ver como a descrevia o delegado: mentirosa, pilantra, desavergonhada, bandida! Num dado momento pensou que tudo estava acabado: estivera no lugar errado e na hora errada; sua memória era fraca, falava besteira demais, enfim: estava frita. Desesperou-se. Era doente, verdade pura, por que ninguém acreditava? Que droga! Mas não podia revelar... Sendo que se dissesse a verdade talvez se salvasse... Será? Nunca! Não podia confessar! Aquela negação estava enfiada em sua cabeça, enraizada desde a infância; mesmo que quisesse, não conseguiria. Enfim, ia ser presa, humilhada, ia sofrer e seria o fim: prego batido e ponta virada!
- Então, minha filha, você disse que não conhecia o estuprador, mas antes disso disse que não tinha visto o safado; que negócio estranho é esse? Ou bem você não viu o cara, ou bem não conhece o cara. Olha, você está em maus lençóis!
A escrivã estava ofendia com todo aquele massacre; ora bolas, era uma mulher também! Para que tanta humilhação? Já nem ligava mais para aqueles barulhos, até que veio um alto, muito alto, tão alto que chamou também a atenção e delegado e do policial, que pararam as atividades, suspensos.
- Que zoada é essa?
- Que djjjjabo é isso, homi?
A testemunha permanecia com a cabeça voltada para o terço nos joelhos.
- Que barulho da porra foi esse?... Eu ein... Mas, como eu dizia, a senhora provavelmente já ficará aqui presa, porque não quer me contar a verdade...
Aí a testemunha ergueu os olhos e fitou o delegado. Entreolharam-se. Outro barulho soou, discreto, mas indisfarçável.
- Mas doutor, eu sou doente, sou inocente, já disse!...
- Doente uma ova! Você é perfeitamente saudável; sua doença é a mentira!
Outro barulhinho veio, bem no meio do protesto da coitada, que berrava:
- Mentira droga nenhuma! Mentira é o c...!
O delegado surpreendeu-se com aquela ousadia. A mulher desembestou. Outro barulho estrondou, alto como aquele.
A testemunha desesperou-se e começou a se debater. Partiu para o ataque, feito bicho acuado:
- Sou doente, doente, por que ninguém acredita?!
Aí os barulhos estouraram de vez, altíssimos e agora nítidos: eram enormes peidos, constantes, incontáveis.
- Estão vendo?, sou doente! Não posso falar demais, muito menos pensar muito e nem sequer chegar perto de me aperrear; sou doente!
Para agravar a situação, a testemunha pôs-se também a urinar nas calças. Levantou-se, envergonhada, para sair da sala. Todos estavam estupefatos, verdadeiras estátuas.
- Estão vendo, eu não menti, nunca menti nessa disgrama! E agora vou-me embora!
E partiu a sonora criatura, as pernas apertadas, pingando urina e liberando longos e intermináveis peidos pela delegacia fora, feito uma lambreta vazando óleo.
Silêncio geral. Reflexão. Tempo. Ao cair em si, o delegado perguntou:
- Que raio de doença é essa?
Ao que o policial respondeu:
- Não sei doutor, mas que é doença, é...
- Dos nervos?
- Pode ser, mas ataca outras partes...
- Que coisa... Será que foi por isso que ela não ouviu os outros dois tiros? Sorte dela essas bufas não terem denunciado sua posição pro bandido...
O policial quis rir, mas olhou para a escrivã e se conteve.
E a escrivã, com um baita tom repreensivo na voz, indagou:
- E então, como fica o depoimento, senhores investigadores?
Afiando ainda mais o tom, ela emendou:
- Aliás, sendo essa mulher a única (pronunciou "única" rangendo os dentes) testemunha, como fica o caso?
Ao que respondeu o delegado, pensativo, distante, ainda sob o efeito do fato:
- Autoria desconhecida, senhora escrivã, tudo indica: autoria desconhecida...