ENGAIOLANDO TALENTOS

Estava olhando a rua pela janela do meu escritório, quando ao longe avistei uma casa com várias gaiolas repletas de passarinhos.

Lembrei-me de minha mãe que contava que meu avô (que nem cheguei a conhecer) mantinha pássaros presos. E ela, ainda menina, argumentava com ele que aquilo não estava certo. Tanto ela falou que um dia ele ficou nervoso e arrebentou as gaiolas, libertando os pássaros.

Só que, ao invés de saírem voando, eles permaneceram ali, no chão sem esboçar nenhum desejo de voar. Foi ai que minha mãe chegou à triste constatação de que eles já não sabiam mais voar, haviam perdido o seu dom natural. Estavam ali atordoados sem saber para onde ir. Nesse momento, aconteceu algo que chocou a todos: um gato apareceu e começou a persegui-los, comendo alguns deles.

Foi uma cena alarmante, contou-me minha mãe. Ela ficou num misto de tristeza e arrependimento, pois na ânsia de libertá-los, sua argumentação acabou levando-os à morte. Embora no fundo ela soubesse que só havia adiantado algo que lentamente aconteceria. Eles já estavam meio mortos na gaiola. Não havia muita escolha para aqueles pequenos seres com asas, mas não “voadores”.

Sem dúvida, um dos grandes talentos dos pássaros é voar. E privar os seres de usarem seus talentos é cruel e uma condenação a uma vida sem propósito.

Continuei olhando pela janela para as gaiolas e vi uma aberta com comida dentro e um alçapão. Era uma armadilha! Bem pertinho dela estava um pássaro magrinho, penas ouriçadas, parecia faminto observando o alimento.

Fiquei ali tentando mentalmente avisar o passarinho para que não fosse até lá. Quase cheguei a gritar, mas de nada adiantaria, pois ele jamais me entenderia. Mas parece que algo o assustou e ele voou para longe. Senti um alívio, mas só momentâneo, pois sabia que uma hora ou outra, alguma ave seria pega. E me senti impotente.

Depois desse acontecimento, fique pensando nas armadilhas que as pessoas também caem, nas quais elas irão sacrificar seus talentos para não morrer de fome.

Quantas pessoas deixam seus talentos de lado e se prendem a empregos de que não gostam que as fazem definhar e soltar um canto melancólico, tal qual o dos pássaros presos.

Quantos de nós não deixamos os nossos talentos serem engaiolados?

Fala-se muito em desperdício de água, de energia, mas e os desperdícios de talentos?

Não acredito que o apagão de talentos seja proveniente de falta de talentos, mas sim de talentos sendo sufocados e mal usados e consequentemente atrofiados, tal qual as asas dos pássaros.

Em neurociência aprendemos que, assim como há neurogêneses, ou seja criação de novos neurônios, há também apoptose de neurônios que não são usados, ou seja, se não exercemos certas habilidades que temos, elas deixam de existir... Sim, isso mesmo, o cérebro não gosta de desperdício, se não tem utilidade ele se encarrega de fazer desaparecer...

Triste ter um dom que já veio prontinho de “fábrica” ser descartado dessa forma.

Sim, podemos desenvolver outras, mas se nascemos com determinadas habilidades, se somos presenteados com elas talvez exista um propósito maior para isso, elas são para serem exercidas em nossas vidas e isso está ligado ao nosso propósito de existir, nossa missão particular.

Geralmente quando temos um dom gostamos de exercê-lo desde pequenos. São tendências que se manifestam desde tenra idade. Quem já não escutou frases do tipo: Andrezinho vai ser engenheiro, pois adora fazer cálculos. Ou então: essa menina nasceu com o dom de escrever, aprendeu antes de entrar na escola. Rafaela parece que nasceu dançando, e por ai vai.

Se as pessoas fizerem o que realmente sabem, querem e têm aptidão natural para fazer, o mundo vai ser um lugar melhor para todos.

Mas, muitos escolhem a carreira olhando para o cifrão e não para o coração.

Quando alguém faz algo de que realmente gosta, vemos o brilho no olhar e o trabalho invariavelmente bem feito. E isso é vantajoso tanto para o profissional quanto para as empresas.

Sei que tem profissões ainda bem difíceis de serem exercidas mas, que também são essenciais e que por hora é utopia falar em todo mundo trabalhar somente no que gosta. Mas, acredito que pouco a pouco o ser humano vai conseguir e já está conseguindo automatizar e robotizar muitas tarefas.

As grandes revoluções começaram devagar e foram evoluindo, então estou aqui lançando a minha voz ao vento para quem quiser aderir: use e abuse dos seus talentos.

O talento dá um propósito maior de existir. Com ele deixamos nossa marca no mundo.

Se por hora não conseguir utilizá-lo em sua profissão, que seja pelo menos usado em tarefas não remuneradas. Tente ao máximo mantê-lo vivo.

Muitas empresas já estão percebendo que é muito mais vantajoso descobrir quais são os talentos de seus funcionários e aproveitá-los em suas ações e não tentar moldá-los ao que precisam.

Não estou dizendo aqui que não devemos desenvolver novas habilidades, longe disso, só estou dizendo que o talento principal é o que já vem de “fábrica” e que deve nortear a carreira da pessoa e depois, sim, ser complementado com o desenvolvimento de aptidões adicionais.

Converse com um grupo de pessoas aleatoriamente e verá que há uma porcentagem muito grande de gente que não faz o que tem verdadeira vocação para fazer.

Uma hora todos terão o direito e por que não dizer o dever de usar seus talentos e sei que ai sim o mundo terá a verdadeira sustentabilidade e o canto dos pássaros com certeza será mais alegre!