SOB OS ANDRAJOS VI - Sá DELAIDE (A velhinha do porão)
Uma das pessoas mais doces e encantadoras que encontrei durante a minha infância, foi uma velhinha que morava no porão do Educandário em que eu estudava, quando fazia o curso primário. Chamava-se Adelaide, mas era conhecida por Sá Delaide. Era de pele clara, rosada e tinha lindos olhos azuis. O cabelo, bastante encanecido, dava uma entremostra de que havia sido louro. Vestia-se com saias longas e usava uma blusa sem mangas com decote oval, para trabalhar. Trazia um rosário de contas brancas e azuis ao pescoço. Não sei por que morava ali, talvez porque não pudesse alugar uma casa ou mesmo um quarto. Alguns netinhos viviam com ela. Lembro-me bem de suas carinhas alvas, pálidas e sujas.
_ Bom dia, Sá Delaide.
_ Bom dia, minha netinha. Vai querer alguma coisa, hoje?
Era assim que tratava cada aluno ou aluna. E atendia a todos, com paciência, tendo sempre no rosto, um sorriso bondoso.
Hora do recreio. Momento em que conseguia vender as coisas gostosas que fabricava para sua sobrevivência. Pela janela do porão, despachava os tijolinhos de coco, de leite, de goiaba, de banana, as cocadas de rapadura com coco e as puxas feitas de mel de rapadura.
Muitos alunos traziam um dinheirinho para comprar suas merendas, mas havia também os que compravam fiado, apesar da advertência: FIADO SÓ AMANHÃ. QUEM VENDE FIADO, FICA SEMPRE POBRE. Os cruzeiros ou centavos que recebia, colocava-os no bolso da saia longa, de fazenda ordinária. Às vezes, se impacientava, porque os alunos a perturbavam fazendo os pedidos, todos ao mesmo tempo. Também, ninguém é santo para permanecer calmo diante daquela algazarra:
_ Sá Delaide, me dê duas cocada!
_ Sá Delaide, eu quero cinco puxa!
_ Sá Delaide, eu quero tijolinho!
_ A Delaide, eu... eu... ero...u’a oada... (gago).
E assim continuava, até que o sino nos chamasse para o retorno às classes.
Sempre gostei de conversar com pessoas idosas, talvez por serem mais experientes ou por inspirarem mais segurança, calma, não sei. O período em que convivi com ela, foi durante o meu curso primário e contava entre sete e onze anos de idade. Um dia, as aulas terminaram mais cedo. Aproveitei para comprar uma merenda e pedir um copo d’água:
_ Pois não, minha filha, eu tava mesmo querendo falar com vossimincê. É que eu tenho estes netinhos que a minha filha deixou comigo, pra ir arranjar um trabaio. E eu queria pedir uns paninhos véios pra fazer u’as roupinha pra eles. Tenho pena de ver os bichins assim, e o que eu ganho, só dá mesmo pra comer. _ Falou, tentando conter as lágrimas que lhe rolavam pelas faces coradas.
Fiquei comovida e disse-lhe:
_ Vou falar com a minha mãe. Gosto muito da senhora porque é boa, paciente e gosta dos alunos. Sei que eles também adoram a senhora, já ouvi falarem isso.
_ É, eu sei, mais são muito danado! Eh,eh,eh!..
No dia seguinte, trouxe-lhe algumas roupas usadas que agradeceu religiosamente:
_ Deus lhe pague e lhe dê muita furtuna, saúde e filicidade, e pra sua famía também.
Daí em diante, sempre que podia, levava-lhe alguma coisa.
Passados os quatro anos do curso primário, tive que me ausentar para concluir os estudos em uma outra cidade. Após seis longos anos, voltei como professora e passei a dar aulas no mesmo colégio onde estudara, que já então, era o curso ginasial. Sá Delaide não morava mais lá. Soube que estava em Fortaleza, na residência de pessoas abastadas.
Alguns anos depois, já em minha casa, tive a agradável surpresa de recebê-la. Estava mais forte e ainda jovem, apesar de seus setenta ou oitenta anos, não me lembro.
Enquanto almoçávamos, conversamos, relembrando os velhos tempos. Ao admirar-me por ter comido uma manga após o almoço, já que se tratava de uma pessoa de muita idade, ela disse:
_ Minha filha, as coisas só faz mal, quando a gente come cum medo.
_ De onde a senhora tirou isso?
_ O povo da Capital pensa assim. E eu acho que eles é que tão certos.
Conversamos, ainda, relembrando os tempos em que os alunos brigavam por um lugar na janela do porão, para comprar uma merenda e ver aquele sorriso tão doce e sincero com que nos recebia.
_ Eu gostava era muito daqueles danado! _ Falou como se estivesse sentindo saudade.
Ao despedir-se, abraçou-me com carinho.
Desde então, nunca mais a vi, nem tive notícias suas, mas confesso, que lembro com saudades, quando vejo alguém vendendo tijolinhos, cocadas e puxas de rapadura.
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Maria de Jesus. Fortaleza, 25/09/2012