Crônica do Impossível
Ontem, finalzinho de tarde, comecei a fechar as janelas da casa para evitar a entrada dos mosquitos. Quando cheguei na janela do quartinho de hóspedes, no segundo andar, olhei para as montanhas à minha frente - os últimos raios de sol saindo de trás delas como se fosse algum tipo de revelação bíblica - e tive que piscar para ver melhor: havia um homem sentado bem no alto da mais alta montanha, e ele esticava um braço longuíssimo, pegando, a cada vez, uma estrelinha; depois, passava a lustrá-la com todo cuidado, usando algo que parecia uma flanelinha seca.
Vestia calças jeans e camiseta, tinha cabelos encaracolados e parecia bem jovem. Ao findar do trabalho, ele a girava entre os dedos, e ao verificar que ela estava realmente bem polida, colocava-a de volta no céu.
Ele percebeu que eu o observava, e enquanto o céu tornava-se de azul clarinho, meio-alaranjado, para um tom mais escuro e aveludado de azul, ele sorriu e me disse:
-Olá, Ana! Linda tarde, não?
-Olá! É verdade... você... é Deus?
Ele sorriu novamente, e vi que tinha o sorriso mais belo do mundo.
-Sou. Por que a surpresa?
-É que eu pensei em algo... mais...
Imediatamente, ele se transformou em um distinto senhor de longas barbas e túnica imaculadamente branca.
-Assim?
Ele abriu os braços, dando uma gostosa gargalhada, e transformou-se novamente no homem jovem de calças jeans e camiseta. Eu ri, apenas, sem saber o que responder. Se fosse você que estivesse de repente, diante de Deus, em pessoa, o que diria a ele? Talvez perguntasse sobre o que acontece depois da morte; quem sabe, uma pergunta mais transcendental, como 'Qual o sentido da vida?' Ou poderia perguntar coisas como por que as pessoas sofrem. Digo, as pessoas boas... ou então, ficasse sem palavras, como eu fiquei.
Ele pegou mais uma estrelinha, passando a esfregá-la com todo cuidado. Deu uma assopradinha nela, e um vento cálido bateu de leve em meu rosto. Comentou:
-Dá um trabalhão fazer este serviço. Mas eu tomo conta de todas elas! E olha que são bilhões, trilhões, zilhões de estrelas!...
-E você cuida de todas? Até mesmo daquela ali, mais apagadinha?
-Ora, Ana... não existem estrelas apagadinhas. São todas apenas estrelas! Daí, de onde você está, tem a impressão que ela é pequenininha, mas isto só significa que ela está mais distante de você do que as maiores e mais brilhantes - que nem sempre são tão grandes assim, entende? É tudo uma ilusão de ótica. Gosto de brincar com os sentidos de minhas criaturas, a fim de aguçá-los mais.
Não pude deixar de exclamar:
- Caraca! Quero dizer... er... desculpe-me a blasfêmia...
Ele riu alto.
-Não se preocupe, Ana! Esse negócio de blasfêmia é invenção de vocês, que adoram se colocar abaixo do que realmente são! Por que vocês se distanciaram tanto de suas origens, Ana? Não podem ver que somos todos feitos da mesma essência? A diferença, é que eu estou mais adiante do que vocês. A diferença, é que eu sei! Caraca... Êta estrelinha suja, essa daqui!...
Ele continuou seu trabalho, enquanto a noite caia em volta dele. Olhou-me de soslaio, enquanto esfregava freneticamente a Estrela Dalva:
-Você não tem nada para me perguntar, Ana?
Pensei nos milhões de perguntas que rolavam dentro da minha cabeça, engalfinhando-se umas às outras, há tantos anos.
-Você não tem muito tempo... desembucha, mulher!
De repente, minha mente tornou-se clara e brilhante, como uma das estrelas que ele acabara de limpar... disse a ele:
-Você toma conta de todas as estrelas, não é? Cuida bem delas, não cuida?
-Claro! Eu cuido de todas elas! As 'pequenas' e as 'grandes,' as mais brilhantes e as menos brilhantes, as novas e as antigas. E também daquelas que já morreram, Ana.
Dizendo isso, ele sorriu e me acenou um adeusinho descontraído. Fechei a última janela da casa, que estava silenciosa.
Mais tarde, ao sair para darmos uma volta com nossa cadelinha, olhei para o céu e vi a Estrela Dalva. Nunca a tinha visto tão grande e brilhante quanto ontem à noite.
Vocês a viram?