Uma fotografia do Brasil

Talvez o leitor nunca tenha ouvido falar em Hercule Florence. Esse camarada era francês. De vez em quando os franceses e outros tipos de europeus tinham a ideia exótica de vir ao Brasil. Em 1832, Florence estava morando na atual cidade de Campinas. E foi lá que um belo dia, enquanto passeava em sua varanda, lhe ocorreu a ideia de que talvez houvesse um meio de fixar as imagens da câmara escura. Foi uma ideia revolucionária. Mais alguns testes e, em alguns meses, Florence havia inventado a fotografia. A descoberta da fotografia, portanto, ocorreu em solo brasileiro. 

E neste ano em que são comemorados os 180 anos da invenção de Florence, foram publicadas algumas matérias especiais a respeito. Além de algumas curiosidades a respeito da técnica utilizada por Florence, que incluía usar urina como fixador, as matérias destacavam a dificuldade do nosso fotógrafo em encontrar brasileiros com quem pudesse compartilhar as suas descobertas.

 

Numa anotação, Florence disse o seguinte: "Em um século que se recompensa o talento, a Providência me trouxe a um país onde isso não importa. Sofro os horrores da miséria, e minha cabeça está plena de descobertas. Nenhuma alma me escuta, nem me compreenderia. Aqui só se dá valor ao ouro, só se ocupam de política, comércio, açúcar, café e carne humana".

Essa frase foi uma das melhores fotografias tiradas por Florence. Continua sendo um retrato atual do nosso país. Não tenho muitas razões para acreditar que o talento passou a ser recompensado por aqui. Hoje ele parece estar submetido à lógica de mercado. Se não houver mercado para o seu talento, você também sofrerá os horrores da miséria. Ou então vai esquecer tudo e procurar algo que dê dinheiro. De vez em quando até nasce um Niemeyer. Mas um número muito maior de pequenos gênios provavelmente foi abortado antes de nascer, porque precisava sobreviver e não tinha tempo para fazer aquilo para o qual tinha talento.

Tenho certeza que há milhões de pessoas com a cabeça plena de descobertas fantásticas tentando desesperadamente chamar a atenção na Internet. A maioria não vai conseguir. Valorizamos outras coisas. Não temos ouro, mas temos o futebol. Eu gosto, eu jogo e eu acompanho futebol, mas eu não acho o talento do Neymar superior ao de nenhum outro que faça outra coisa na vida. E convenhamos que existem coisas na vida mais importantes que futebol. No tempo de Florence, as pessoas só se ocupavam de política. Nada mudou, e no fundo é a mesma coisa: nos ocupamos de política porque achamos que ela é muito parecida com o futebol.

O “comércio” citado por Florence poderia hoje ser ampliado para dinheiro. Açúcar e café poderiam ser substituídos por outras coisas. Sei lá, baladas e música pop. Carne humana pode continuar sendo carne humana mesmo – não mais escravidão, mas sexo. Hoje em dia talvez Florence dissesse algo assim: aqui só se dá valor ao futebol, só se ocupam de política, dinheiro, baladas, música pop e sexo.

Deem uma olhada na lista completa dos concorrentes ao prêmio de Maior Brasileiro de Todos os Tempos e tirem as suas conclusões. Agora já está na fase final, e o mínimo que se pode esperar é que o Santos Dumont vença.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 24/09/2012
Reeditado em 01/10/2012
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