SOB OS ANDRAJOS IV - INSÔSSO
Era um dos que viviam de porta em porta, à espera da caridade alheia. Não gostava de pedir esmolas. As pessoas davam porque queriam, uma esmolinha ou um "almocim" qualquer coisa que pudesse matar a fome. E era sempre bem-vindo onde chegava. Não se sabe o por quê de ter sido apelidado de Insôsso e ninguém sabia o seu verdadeiro nome. Na minha cidade, muitas pessoas atendiam por apelidos. Já o conheci assim, um mendigo de roupas velhas, surradas, carregando bolsas a tira-colo para guardar as esmolas. Conservava o jeito manso, paciente, distinto com as pessoas que dele se aproximavam.
A natureza não fora generosa com ele. Era quase cego. Seus olhos, cujos cílios eram virados para o interior, piscavam constantemente. Talvez por causa disso, andasse quase se arrastando, apoiado a um bastão. Nunca cheguei a conhecer sua origem, nem se tinha algum lugar para morar. Andava, geralmente, de pés descalços, não encarando por onde pisava, se no solo esturricado do meu sertão, se na lama quando coincidia chover, sem reclamar, sem se impacientar, sempre achando que a vida estava boa. Quando alguém lhe perguntava se estava bem, respondia com um sorriso nos lábios que lhe era peculiar: _ "Tô ótiss." Para ele, tudo estava "ótiss". Falava empregando "sss" que o tornava difícil de ser entendido pelas pessoas. Certo tempo, correu um boato pela cidade, de que o Insosso falava Inglês. Crianças e adultos o abordavam para fazer perguntas e ouvi-lo responder em Inglês. Pacientemente, sorrindo, aceitava o ingênuo interrogatório. Um dia, estava à porta de minha casa e vendo que esperava uma oferta, perguntei-lhe se queria algo para comer. Então, calmamente respondeu, piscando os olhos em demasia: "Jesuisinhas Carvalhazinhas, qualquers coisinhas serves." Enquanto comia, demonstrando estar com bastante fome, perguntei-lhe: - "Insosso, com quem você aprendeu a falar Inglês?" Sorrindo, respondeu: "Jesuisinhas Olimpiazinhas". "Ah! conheço bastante. É minha amiga. Fale para eu ouvir se sabe mesmo ou se é invenção das pessoas." Ele não hesitou um minuto e disse: "Prossi, proli, prossi, proli." Não entendi, também não perguntei o que significava e respondi: "OK, OK! Thank you, Thank you!" Com um largo sorriso, respondeu como se tivesse entendido o que falei: "Tá ótiss".
Em comparando com os tempos atuais, era simplesmente desenganador, ver seres humanos na fase mais carente da vida, que para mim é a velhice, tendo que mendigar o alimento para o seu sustento e um teto para o descanso no final do dia. Não existiam, em minha cidade, instituições filantrópicas tipo abrigos para idosos, nem ONGS, qualquer ajuda da parte dos poderes públicos, que amenizasse a via dolorosa daquelas criaturas tão queridas, mas que contavam só com os Poderes de Deus, baseados na sua fé e na caridade das pessoas amigas.
Depois que deixei minha terra natal, nunca mais o vi nem tive notícias desse nosso irmão, que conquistava todos com o seu jeito simpático e aquele sorriso iluminado que lhe era tão peculiar. Onde quer que esteja, acredito que no Paraíso, estará ensinando aos anjos: _ "Anjoszinhos, de asizinhas, sei falares ingleisinhos: prossi, proli, prossi, proli... Aqui, é tudis ótissss!!!!"
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Maria de Jesus. Fortaleza, 24/09/2012.