A doce música
A música tem sido um dos grandes prazeres que encontrei na vida. Está certo, não consegui aprender a tocar nenhum instrumento, isto é, não com maestria. Arranhei um violão Di Giorggio durante algum tempo, cheguei a tocar alguns “sambinhas”, depois me meti a aprender o clássico, durante uns três meses tomei aulas e consegui tocar “Olhos Negros” (otchitchornia), uma canção russa, e a primeira parte do “Romance de Amor”, de autor anônimo, cuja transcrição é atribuída a Antônio.... Qual Antônio mesmo? Antônio Rovira? A segunda parte está maturando há uns vinte anos. Bem, mas afinal, alguém tem que ser o ouvinte, e eu sou o melhor ouvinte do mundo.
Achava, antigamente, que não tinha direito a grande música. Ouvia no rádio, em discos, mas, à rigor, nunca tinha ouvido música ao vivo. Uma vez, numa festa junina ouvi uma pequena banda e fiquei extasiado, horas parado ali na frente esperando aquelas melodias simples. Passava diante do teatro Municipal, via os cartazes dos concertos, mas nunca entrei. Achava-me indigno, preferia ir ao cinema e ficava maravilhado com as trilhas sonoras, música de primeira, capaz de levar às lágrimas: Nino Rota, Maurice Jarré, Max Steiner, Kurt Weil, Bernard Herrman, tantos grandes compositores magnificamente executados... É mais fácil chorar no escuro... Por isso eu preferia o cinema.
Então, muitos anos depois, já pai de um filho e morando no interior do estado do Rio, minha mulher sugeriu que fossemos á cidade grande, para comemorar o aniversário de 11 anos do nosso filho;
- Podemos leva-lo a um shopping - disse ela - para comer um sanduíche, olhar as lojas, jogar uns vídeo games.
Programinha mais sem graça, não é? Imagina se eu estava disposto a encarar duas horas de via Dutra somente para ir ao Barra Shopping? Olhei o meu filho que, desanimado diante da perspectiva de ter um aniversário absolutamente sem graça, folheava uma revista como se estivesse desinteressado da conversa dos pais e tive a inspiração:
- Não. Hoje nós vamos ao Teatro Municipal.
Procurei ansioso no jornal sa programação e,sorte a minha, havia um concerto às quatro e meia. Era sábado, o trânsito livre a seria a conta certa de chegar e comprar as entradas.
E chegamos. Conseguimos as entradas. Galerias, lá no poleiro, três lances de escadas. O luxo do térreo, com seus cristais e tapetes foi desaparecendo para dar lugar à pintura descascada.
A orquestra derramada no palco entra o maestro, calvo, de casaca. Cumprimenta o público. Levanta a batuta e... Uma vibração inacreditável chega até nós. Acho que a primeira peça era uma espécie de marcha de Brahms. Em dois minutos eu já estava chorando. Com esforço consegui chegar ao fim.
A peça final, que eu não conhecia: A Ressurreição, de Gustav Mahler. Covardia, essa é de matar de tanto chorar.
Enfim, consegui sobreviver. Lá fora, andando em nuvens, sentamos no Amarelinho para comemorar o aniversário. Apesar de guardar, ainda, a grande felicidade que a música me proporcionou, era incapaz de lembrar de uma única nota dela. Recordava cenas visuais, por exemplo, à volta dos clarins que na sinfonia de Mahler se retiram para tocar nos bastidores, o que o autor registrou na partitura como “Al lontano’, os clarins ao longe. Ou a elegância do maestro (Roberto Tibiriçá).
Passamos, depois, a descer para o Rio de Janeiro aos sábados, para o concerto das quatro e meia. Com o tempo, aprendi a não mais chorar com tanta facilidade nos concertos e creio que até dormi em alguns deles. Lembro dessa época como uma das mais felizes da minha vida.
O meu filho, que estudava piano, quase se profissionalizou, chegando a ganhar alguns concursos. Hoje continua tocando, mas acometido por um realismo que é só dele, está estudando medicina.