SOB OS ANDRAJOS III - ANA PAULA
Eram, mais ou menos, onze horas quando bati à porta de sua casa.
Levava uma moeda de mil réis e uma lata com grãos de café para torrar. Fazia isso todas as semanas e até já gostava de apreciar aquela mão-de-obra, enquanto me deliciava sentindo o cheirinho gostoso do café. Naquele dia, cheguei na hora do almoço. A princípio, hesitei em entrar, mas depois resolvi fazê-lo, atendendo a uma voz fraca que veio do interior da casa:
_ Entre! _ Quase sussurrando, respondeu-me com amabilidade.
Como a porta estava fechada, pulei a janela que era bastante alta para uma garota de oito anos. Fiquei surpresa diante do quadro que vi. Sobre uma esteira posta no chão, estava o almoço servido. Em redor, sentadas em círculo, Ana Paula e mais duas mulheres preparavam-se para a refeição: sua irmã Maria Romana, alta e forte, e sua mãe de quem nunca soube o nome. Ana Paula era uma bondosa criatura de meia idade, franzina, de cor negra e cabelos pixains grisalhos, que dificilmente formavam duas pequenas tranças no alto da cabeça. Usava sempre saia preta, blusa e sapatos brancos, como se pagasse alguma promessa a santos ou vestisse um uniforme.
Rezaram. A velhinha mãe serviu as filhas e também a mim, convidando-me a fazer parte da mesa:
_ Coma! – disse, oferecendo-me o prato.
Aconcheguei-me a um cantinho da esteira e comi de tudo que colocou no meu prato. O sabor daquela comida era diferente do sabor da que era feita lá em casa, não porque minha mãe não soubesse cozinhar, mas porque toda criança gosta de novidade e, segundo o dito popular, “Comida boa é a do vizinho.” Não havia requinte, nem sofisticação. Tudo era simples, do dia-a-dia, mas feita com carinho e com a experiência de quem sabe o que faz. O tradicional baião-de-dois, um churrasquinho de frango cujo odor dava água na boca, rodelas de tomate com cebola branca e alfaces, formando um lindo prato e farofa dourada feita com cebola roxa, que dá muito certo misturando com banana.
Era exemplar a ordem que reinava naquele momento aconchegante em que ainda se reunia a família para uma refeição. Percebi que eram felizes. Estava presente em seus semblantes, a tranqüilidade de uma paz interior que irradiava de seus corações puros e se espargia pelo ambiente. Criança sente quando as coisas lhe fazem bem e foi isso que senti naquela convivência agradável, onde a amizade era o fator dominante. Almoçamos. Para sobremesa, a velhinha serviu-nos uma talhada de melancia, que nos foi muito bem-vinda, dado o clima quente da minha terra em todas as estações do ano. Indago-me, como aquelas criaturas cujo poder aquisitivo era mínimo, sem nenhum tipo de aposentadoria, pensão, herança, muito menos um emprego, tinham uma mesa bastante variada.
Após agradecer a Deus pelo benefício recebido, Ana Paula desfez a mesa e ajudou sua mãe a sentar-se na rede. Era já meio-dia, quando se dirigiu à cozinha para lavar a louça e, naturalmente, torrar o café. As outras começaram a rezar a oração do Anjo, seguindo-se um longo rosário. Maria Romana, com uma voz grossa e meio rouca, iniciou o terço. Era alta, forte e usava vestidos longos. Acompanhei a reza, sentada em um peitoril, onde algumas plantinhas davam um toque de alegria e bom gosto. Já no final do rosário, as duas cochilaram. Fui então para o outro lado, sob um alpendre, onde Ana Paula torrava o café em uma panela de barro, preta e brilhante pela ação do fogo. Enquanto mexia, respondia às minhas perguntas, com uma dose de paciência nunca vista: Por que comiam sentadas no chão? Por que rezavam um rosário todinho após o almoço? Lá em casa só rezam para agradecer. Por que Dª Romana veste roupa comprida? Por que os grãos ficam pretos e brilhosos? Por quê?... Por quê?... Brinquei com as galinhas, com os capotes, com um lindo gatinho amarelo e com o papagaio que dizia coisas engraçadas. Uma vez, ele gritou: Ana Paulaaa!... Era divertido ouvir aquela ave falar! Também era gostoso o cheirinho de café no ar. Dentro de pouco tempo, estaria com a lata cheia encostada ao meu nariz. Penso que Ana fazia isso, para que eu sentisse o cheiro gostoso e não tivesse dúvidas da qualidade do que acabara de produzir com tanto carinho! Não lhe faltava um sorriso doce e brilho no olhar ao meu pequeno elogio.
Torrado o café, chegara a vez de moer. Aqueles braços magros manejavam a mão de pilão num ritmo compassado, enquanto os grãos negros e melosos se transformavam em pó.
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Maria de Jesus, Fortaleza/22/09/2012