SOBRE OS ANDRAJOS II - RAIMUNDA PEREIRA

Curso de Letras UFC. (26/06/1973)

Prof. Moreira Campos

Era assim que todos a chamavam. Aquela figura tornara-se comum e até querida por todos, dada a sua simpatia e popularidade. Conhecia-a pelas ruas da minha cidade, vestindo roupas sujas e rasgadas, usando, continuamente, uma tira velha em redor da cabeça. Quase sempre, à hora do almoço, sentava-se à porta de minha casa, esperando o prato de comida que minha mãe lhe oferecia. Mesmo estando com fome, nunca pedia. A hora da sesta passava ali mesmo. Às vezes, dormia.

Contam que ela, aos doze anos, fora vítima de uma desilusão amorosa, sendo abandonada pelo namorado que a deixara grávida. Ao aproximar-se o nascimento do bebê, fugiu da casa onde trabalhava como doméstica, chegando a ter o filhinho no mato, lá se escondendo durante três dias, sem comer e sem beber, cuja conseqüência foi ficar louca. Desde então, perambulava com a idéia fixa dos seus doze anos, pois era assim que respondia sempre que perguntavam a sua idade, quando, na realidade, já tivesse uns setenta anos, talvez. Ao pegar qualquer pedaço de papel que lhe caía nas mãos, simulava a leitura de uma carta: _ "São Paulo, 12 de outubro a 1912. Escrevo estas mal traçadas linhas à minha querida, adorada Raimunda"... Sabia de cor. Às vezes mudava um pouco, porém o conteúdo era sempre o mesmo. Continuava a ler aquele pedaço de papel rasgado, imundo, vazio como a sua vida miserável, enquanto pessoas inescrupulosas riam e se divertiam, sem se dar conta de que, por baixo daqueles andrajos, existia um ser humano que não tivera a mesma sorte que elas, mas a mão trágica do destino a esmagar os sonhos da juventude, tirando-lhe o próprio uso da razão.

Apesar do seu desvario, notava-se nela um razoável QI, bem como acentuada elevação de espírito, pois havia momentos em que se nos parecia estar em plena lucidez. Então, balbuciava coisas de seu passado amoroso, ou de sua vida como doméstica, trabalhando em uma casa de família. Chegava a falar de seu bebê que não sobrevivera à precariedade do nascimento e deixava transparecer grande tristeza que lhe fazia verter lágrimas dos olhos. Mostrava pela paciência e serenidade com que atendia as pessoas, que tinha bons sentimentos. O destino cruel transformara-a naquele ser vegetativo, cuja dor escondia num trago de cachaça, fazendo-a cair pelas coxilhas, dormindo até o efeito do álcool passar. Dotada de boa voz e ritmo, ao se levantar, dançava e cantava como uma pessoa feliz.

Raimunda fora mais uma vítima do preconceito, dos costumes antigos, em que uma jovem só podia ter um filho através do instituto do casamento. Apesar de ser ainda criança, pois na época só contava doze anos, sua vida teria sido mais feliz, menos sofredora, se a sociedade não fosse tão preconceituosa como tem sido até agora. Um pouco de solidariedade, caridade e amor cristão, teria dado sentido não a uma, mas a duas vidas.

A mulher, ainda tem muito que lutar, para quebrar os grilhões que a escravizam, vencer esses tabus que a impedem de ser autêntica e de realizar seus sonhos, seus ideais. Enquanto viver sob o jugo dos olhares discriminantes e do pensamento machista, será um objeto sem valor, sem respeito, envolvido numa capa de hipocrisia. Enquanto não hastear a bandeira de sua independência, será indigna de ostentar o nome de MULHER.

E assim, Raimunda passou a sua infeliz existência. Faleceu no último dia do ano de 1971. Deixou saudade no meu coração.

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Maria de Jesus Fortaleza, 22/09/2012.

Maria de Jesus
Enviado por Maria de Jesus em 22/09/2012
Reeditado em 24/09/2012
Código do texto: T3895053
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