De salto alto

Eram oito horas da manhã. Saí de casa usando, muito a contragosto, meu all star velho, rasgado e imundo, mas que, graças a Deus, era preto. Assim nem todo mundo precisaria ficar sabendo o quão preguiçosa eu era para tomar vergonha na cara e lavá-lo. Ou o quanto eu era dura para comprar um calçado novo. Não acreditava que, depois de meses trabalhando feito escrava em uma loja de roupas, ainda não havia conseguido dinheiro para comprar algo decente. Culpa das contas que chegavam pelo correio todo mês para me assombrar.

Suspirei, dirigindo-me para o vestiário, onde colocaria meu uniforme de serviço. Afinal, uma escrava precisava estar vestida adequadamente para aturar uma penca de clientes mal-educados e impacientes.

- Suzana! Ajude esta cliente aqui. Ela não consegue decidir entre esses dois vestidos. – Meu gerente estava soltando fumaça pelo nariz. Uma senhora dispunha de dois vestidos praticamente iguais nas mãos. Iria comprar os dois, mas, quando chegou ao caixa, decidiu optar por apenas um e agora estava entre um grande dilema: “Este ou aquele?”.

- Minha senhora, por que não leva os dois? Podemos parcelar em até seis vezes, sem juros. – Falei de modo monótono o discurso já decorado de tanto repetir.

Ela desandou a tagarelar que adoraria levar os dois, pois eram lindos, mas o preço era abusivo e ela não teria condições de pagá-los, nem mesmo se fizesse o parcelamento. Acusou-nos de roubo e continuou a resmungar suas reclamações.

Foi quando olhei para seus pés e quase caí para trás. Aquela senhora estava reclamando de quê?! Ela calçava um par belíssimo de scarpins bordô, com detalhes em preto nas laterais e um salto de aproximadamente 15 centímetros. Eram tão lindos que senti o impulso de ajoelhar-me para admirá-los mais de perto.

Gaguejando, interrompi-lhe para perguntar onde os havia comprado. Ela não pareceu muito contente por saber que minha atenção estava em outro lugar em vez de no seu discurso. Entretanto, empinou o nariz ao dizer que fora um presente da nora e então recomeçou a falação, fazendo meu gerente me fuzilar com os olhos. Mas eu não ligava. O importante era que eu precisava daqueles sapatos. Eles deveriam estar nos meus pés e não nos daquela senhora que nem ao menos sabia combiná-los com sua roupa. E eu iria tê-los. Iria achar a loja onde a tal nora os havia comprado. Não passaria mais um dia usando aqueles tênis detonados!

Assim que o expediente acabou, saí em busca dos scarpins bordô. Me sentia como uma guerreira em uma missão. Estava focada em achá-los e olhava para todas as vitrines com olhos de águia.

Finalmente, os avistei na vitrine de uma loja chique. Pelo menos, era o que aparentava ser. Senti as mãos suarem de nervosismo. E se fossem caros demais? Não. Eu daria um jeito. Aproximei-me e, boquiaberta, apoiei-me no vidro da vitrine. Eles me encaravam e eu quase podia ouvi-los implorando: "Compre-nos, por favor!"

Entrei na loja, sentindo a atmosfera consumista me dominar. Havia dezenas de mulheres paquerando pares de sapatos quase tão lindos quanto meus scarpins bordô. Elas os calçavam, andavam um pouco em frente ao espelho e sentenciavam para a vendedora: “Vou levar!” Então esta os colocava cuidadosamente em uma caixa preta e perguntava: “Crédito ou débito?” Depois só havia o farfalhar das sacolas reluzentes sendo balançadas distraidamente pelas mãos das mulheres, enquanto elas saíam da loja com um sorriso satisfeito nos lábios.

E eu queria desesperadamente me sentir assim também.

- Boa noite, senhorita. Posso ajudá-la? – perguntou-me uma vendedora simpática.

Ainda em transe, indiquei-lhe os scarpins na vitrine. Ela sorriu e disse-me que eu era sortuda, pois aqueles eram os últimos e apressou-se em ir buscar. Continuei a olhar os outros modelos a minha volta, imaginando como seria se eu tivesse um closet cheio deles. Seria o paraíso na minha própria casa. Mas um par daqueles já estava ótimo para começar.

- Prontinho! Gostaria de experimentá-los? – disse ela, com o meu objeto de cobiça nas mãos.

- Ah, sim. E como! - respondi.

Calcei-os, tendo a certeza de que nenhum outro par de sapatos ficaria tão bem em mim como aquele. Desfilei um pouco pela loja, parando em frente ao espelho de dois metros. Era perfeito. Sorri, sentindo-me verdadeiramente feliz. E sorri mais ainda quando tive o prazer de falar:

- Vou levar!

A vendedora então me encaminhou para o caixa, elogiando minha escolha e dizendo-me que eles ficaram realmente muito bons em mim. Eu estava embasbacada. Nada tiraria aquele sorriso do meu rosto.

- São R$ 550,90. Gostaria de parcelar?

Foi como um banho de água fria. Podia sentir meu sorriso se transformando em uma careta de pavor. Meus olhos arregalaram-se e um gemido de frustração escapou pelos meus lábios.

Como assim?! Como um par de sapatos podia ser tão caro? Imaginei que fossem, no máximo, uns cento e cinqüenta reais. Talvez duzentos. Mas nada como aquilo! Tentei me acalmar, ainda podia salvar meus sapatos.

- Pode ser em doze? – perguntei, forçando um sorriso.

- Só parcelamos até quatro vezes. – disse a mulher.

Engoli em seco. Então não haveria jeito. Sentia vontade de chorar, porém me contive. A loja ficara estranhamente silenciosa. Algumas mulheres olhavam em minha direção, soltando risinhos. Podia sentir meu rosto em chamas. Que raiva, meu Deus!

Olhei para os sapatos que, infelizmente, não seriam meus. Murmurei um pedido de desculpas para a caixa, dizendo que não poderia levá-los. Saí da loja arrasada. Sentia uma pontada de inveja daquela senhora que, de certo, tinha uma nora rica e que vivia lhe dando presentes caros. Pois é. Eu teria de esperar mais alguns anos para ver se teria a mesma sorte.

Estava caminhando em direção ao ponto de ônibus, quando vi um rapaz em frente a um tapete coberto de scarpins de todas as cores. Era a minha chance. Quem sabe eu não poderia ter um daqueles? Provavelmente, ninguém perceberia que eram falsos.

Aproximei-me do rapaz e corri os olhos pelo tapete. Encontrei-os quase imediatamente. Sorri e perguntei-lhe quanto custava.

- R$100,00, madame. Não vai achar preço melhor!

Falei que iria levar, entregando-lhe o dinheiro. Ele colocou os sapatos em uma sacola e me entregou. A sensação não era a mesma, claro, mas valeria a pena. Agora poderia aposentar aquele all star de vez.

No dia seguinte, sentia-me animada para ir ao trabalho. Peguei os scarpins e então notei que eram bem diferente dos originais. Ontem à noite eu não havia reparado. Eles eram um pouco opacos e levemente manchados. Constatei que a tinta do salto estava descascando e senti uma vontade absurda de estrangular aquele rapaz. Bem, agora não adiantava. Com um suspiro, calcei-os, peguei a bolsa e saí porta afora.

Tentei andar como se calçasse uma relíquia e, por alguns minutos, pude acreditar que era. Até que, entre passos decididos até a loja, senti meu pé afundar. Tropecei e torci o tornozelo, estatelando-me na calçada. Olhei para o sapato no meu pé direito. O salto havia quebrado e a uma dor intensa espalhava-se por toda a minha perna à medida que meu rosto corava. Ouvia algumas risadas abafadas enquanto as pessoas passavam apressadamente pela rua, sem se darem o trabalho de me ajudar. Respirei com dificuldade, sufocada pela vergonha e tentando desesperadamente sair daquela posição.

Seria melhor eu tentar recuperar o all star da lixeira, antes que o caminhão o levasse.

Luiza Venturini
Enviado por Luiza Venturini em 20/09/2012
Reeditado em 20/09/2012
Código do texto: T3892179
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