Filosofia de Bar
Não que eu seja burro! O negócio é que a minha inteligência se manifesta somente em questões muito específicas, se torna difícil para mim, ter de frasear sobre assuntos diversos que envolvam o céu e a terra, não são do meu interesse esses papos transcendentais de ordem ultra-filosófica que nada mais são que um amontoado de idéias incompreensíveis e impossíveis de serem adotadas ao dia a dia. E assim bebíamos numa mesa de um bar da Osvaldo Aranha... Quanto mais o contraste entre o vinho e o frio penetrava na mente dos camaradas, mais a pauta se tornava complexa, chegando ao ponto de eu decidir que dedicaria aquela noite a admirar a única mulher que se fazia presente, até porque nenhum dos outros seria capaz de perceber minha indiscrição, nem mesmo ela, pois, como os demais, também se embriagava de tinto e filosofia. O papo enveredou para a Grécia, foram narradas cenas da vida de Sócrates, máximas de Sosíades, diálogos de Platão e enquanto a trupe viajava pelo antiquíssimo mundo helênico eu me permitia o prazer de observar minuciosamente a boca da mulher, tingida pela uva merlot, proferindo com brio pérolas dos sábios de Atenas; eu, embora não lograsse destilar daquelas frases o sumo ácido da inteligência, ainda assim me comprazia, tanto mais pela boca dela, boca suja de merlot. Depois foram à Alemanha de Kant, Goethe, Schopenhauer e quando a coisa chegou a Nietzsche eu já não sabia o que diziam, até mesmo a mulher contrariava meus sentidos, pois, tomou uma postura arrogante, sobrancelhas alçadas, olhos altivos; ela era realmente muito bonita! A embriaguez chegou a pontos insuportáveis, alguém com um tapa de empolgação ao explanar uma tese complicadíssima acabou por quebrar uma taça de fino cristal, espalhando a tintura por sobre a blusa de lã bege da mulher que por muito alterada pouco fez caso do acidente tratando preferencialmente de debater com entusiasmo sobre os conflitos existenciais oferecendo o belo rostinho às cusparadas do rival da vez. As vozes passaram a ecoar no ambiente, chamando a atenção de todos os presentes, os rostos restavam desfigurados e as idéias se contradiziam, a mulher por vezes acendia um cigarro, tragava-o uma única vez e abandonava-o ao cinzeiro de prata e ali ficava o fumo e as demais substâncias fétidas queimando feito incenso até que ela se apercebesse e por fim acendesse outro. Não sei se pelo alto nível de álcool que lhes corria no sangue, mas, algo dificultava o diálogo a quatro, portanto, dividiram-se e passaram a conversar em duplas, dois sujeitos discutiam a influência da Bossa Nova na música do século vinte e sua importância para o mundo, enquanto a outra dupla, um casal, esboçava reflexões sobre as inúmeras colônias imigrantes existentes no Brasil, distante de ambos os contextos e alheio às discussões, eu, o quinto, completamente ignorado pelo quarteto de bêbados, cada vez mais me deixava hipnotizar pela mulher que se perdia doidivanas naquele labirinto de conceitos. A sociologia caiu-lhes como uma luva, assim como os conflitos no Oriente Médio e as perspectivas para o novo governo federal, após o passado longínquo e o presente monótono, foram arremessados para o futuro por suas mentes tortuosas, ali ficaram prevendo maravilhas tecnológicas, desastres ambientais e genocídios nucleares, a mulher era a mais pessimista, achava que o mundo em breve se acabaria, e, com que graça ela proferiu tais palavras, vinda daquela boca essa profecia me parecia doce e afável. Uma mulher completamente mamada tem seu ar de sensualidade, ainda mais ou exclusivamente aos olhos de quem também está ébrio, seus gestos atarantados e a imperfeição do seu diálogo nos levam a sentir uma vontade intensa de possuir aquela babilônia toda, escalar aquela torre de babel e traduzir-lhe as línguas, acalmar aquele alvoroço de bestas incontroláveis que se apoderara impiedosamente daquele corpinho esbelto que se agigantava sobre um salto alto. No dia seguinte, pela manhã, quando acordei desorientado e vi ao meu lado o corpo nu da tal mulher uma interrogação ainda me gritava alto aos miolos: - Afinal, de que serve mesmo a intelectualidade?