"Silêncio da Vida"

Otacílio Augusto Ranzari. "Ôta", "Óta", acabou em "Gota". Maria Rupertina Tavares Miranda, "Ruti". Seu Gota e Dona Ruti. Nascidos, criados, perdidos em Milharal do Sul, coisica de nada no altiplano catarinense. Solteiro e viúva, um e outro à espera que uma pirueta do destino enfim lhes desatasse os nós – ou lhes amarrasse os trapos.

O máximo de esforço reflexivo em Otacílio Augusto rendera-lhe uma autoimagem singularmente generosa. Tal como o bombardino lustroso com que subia aos domingos o coreto da praça Barão, seu Gota, ausente da melodia, sentia-se a base do edifício harmônico. Fossem quais fossem as peripécias de clarinetas, saxofones, trompetes, a banda inteira nada faria se ele não lhe desse apoio. Dono [e factotum por avareza] da única funerária local, concluía que a expectativa do bom caixão, base da derradeira morada, era a fonte do respeito que todos prestavam a quem lhes abotoava o paletó.

Maria Rupertina, por sua vez, eterna manicure-pedicure, já de quando praticava em seu priminho Adamastor [cujo nome não lhe diminuía o ar efeminado de quem crescera entre talcos e pompons]. Dona de um dos dois centros de estética de Milharal, Ruti atraíra a clientela recém-endinheirada do pedaço. Fascinada por cutucar os outros, não importando quem fosse ou como estivesse, a aproximação com Otacílio veio como oferta para ajudá-lo a lavar e a vestir a defuntaiada local [o que lhe garantiria mexer e remexer quanto pudesse em cada – cliente].

Mas Ruti nunca fora necrófila, não acreditando sê-lo agora. Tanto é que jamais tencionou apelar para alguém de passagem, inda mais das vizinhanças. Como, porém, entre vivos, satisfazer a tara numa aldeiazinha daquelas?

Envergonhado por já não falar direito a língua-mãe – perdido entre o "santa catarina-deutsch" e o dialeto vêneto dos oriundi –, Otacílio não conhecia uma só palavra de inglês. Ocorre que [não se sabe como] ele tinha um pequeno acervo de seriados e filmes "B" em 8 e em 16mm, protagonizados por Roy Rogers, Durango Kid, Zorro, Audie Murphy – mas em versão original. Como não ficava bem um empresário de sucesso e instrumentista de mão-cheia mostrar-se inculto, ninguém sabia daquela cinemateca privée. Guardados num belo caixão de mogno, juntamente com os projetores que lhes davam vida, filmes e seriados dos anos 40 e 50 faziam o deleite abscôndito de seu Gota. Isolado socialmente – certas profissões estão ligadas aos odores de sua prática e ao mau agouro que se lhes associa –, Otacílio, tirante o coreto dominical, tinha, quando tinha, somente a companhia dos mortos. E era com eles que dividia o prazer de suas – sessões [em geral matinées]. Nem pensar em fazê-lo com uma dona de salão, tipo mexeriqueiro que só! Assim, Gota retardava a entrega do falecido da vez, invocando a trabalheira de lavá-lo, vesti-lo etc., o que – compreende-se – teimava em fazer por conta própria. Com a vinda de Ruti, porém, a sorte de um quase trouxe infortúnio ao outro...

Sem nunca terem falado a respeito, Otacílio e Rupertina mantiveram anos a fio a "sociedade empresarial". Alheios ao diz que diz que de quem os via como amantes, sem compreender a razão de não formalizarem a "sociedade conjugal", ambos conviveram [prazerosamente] com mortos entre vivos, sendo até mesmo dignificados por isso. Numa certa manhã de sábado, 14 de outubro de 67, lia-se, com efeito, na coluna "Milharal-manchete" do Diário Milharalense: "O consórcio entre Otacílio A. Ranzari e Maria Rupertina T. Miranda representou um benfazejo aprimoramento nos serviços da 'Casa Funerária Silêncio da Vida'. O gesto ademais singularmente humanitário desses beneméritos cidadão e cidadã milharalenses-do-sul rendeu-lhes justa homenagem do Lions Clube local, cujos Leões e Domadoras, em recente efeméride que congregou o high society de nossa cidade e região, destacaram a exemplaridade da iniciativa."