[Crônica ingênua: Ah, se eu tivesse alma!]
Instâncias de mim — eu-criança, eu-Físico, eu-Poeta: nenhum tema nos assusta; o nosso pensamento tem as asas soltas, nós perguntamos qualquer coisa, qualquer coisa mesmo — e mais: nós desconsideramos os críticos, pois estes já foram reduzidos ao silêncio por um poeta inglês — são como os eunucos, sabem tudo sobre o amor, mas não podem praticá-lo!
Assim, sem interlocutores, numa interrogação sobre escapes, instâncias de mim começaram a perguntar e a pensar uma imagem poética da Terra: eu visualizava o planeta girando, girando, vagando no escuro espaço... e eu escapando, caindo fora... saindo da Terra para o espaço! Sentia-me aliviado como se eu pudesse, enfim, saltar fora de um baita problema que eu não criei — eu não pedi para nascer aqui!
Eu queria escapar assim, como uma “consciência de...”, um ser interrogante, porém, sem esta perecível e ridícula forma humana! Pura energia interrogante que não quer saber de respostas, nem quer ter forma de nada! Ah, eu nem queria mais este corpo cansado que já me deu tantos prazeres, tantas alegrias e tantas dores — eu queria escapar como consciência pura, ou seja, um ser interrogante, mas informe, sem conteúdos, vazio... queria enviar a minha consciência para o espaço infinito, para a vastidão escura do espaço.
Pensar absurdos não desgasta a mente, comecei a pensar e...
Conclui que deveria existir um meio prático e barato de escapar da Terra... nada da custosa parafernália de que sabe o eu-Físico — dinheiro, competência tecnológica, foguetes poderosos... etc. Eu-Criança, pensei, pensei, e disse ao eu-Físico: uai, se é tão custoso sair tecnicamente, então eu fujo então como alma! O eu-Poeta gritou de lá: ... e só vamos gastar mesmo o impulso poético, mas esse é de graça! Nada de gravidade a nos segurar, ou da falta de ar a nos sufocar, e também, nada do terror dos possíveis choques com os meteoritos errantes! Nenhum corpo celeste é apto a se chocar... com uma consciência que saiu a vagamundear no espaço!
As vantagens — deixar para trás aquela imagem do alfanje da Morte sobre o meu pescoço; a maldade dos homens; os amores que não pude e não posso ter; a falta de nexo da vida, e tantas outras... Algo mais amplo: não mais contemplar as muralhas da absurda prisão mental criada por religiões de todos os tipos, e não mais pensar que nem em 100 mil anos, a Ética triunfará, enfim...
Então... resolvido o problema do escape: é acabar com este corpo já combalido e escapar como alma para outros mundos!
Mas havia um probleminha aparentemente insolúvel, e então, eu logo, entristeci: eu não creio em alma, eu não tenho alma... Assim, nem morrendo eu escapo dessa mítica condenação de ter nascido num planetinha tão ruim... eu-criança, tenho dúvidas — pode ser que sim, pode ser que não [tenho alma]; à noite, costumo ter um pequeno medo; mas este se esvai quando vem o sol. Eu-Físico, e eu-poeta, de jeito nenhum! — Não há o modo de que alguém nos convencer da existência da alma!
Pensamento abatido em voo... Haveria outro escape? E os doidos, os ingênuos — parece que os doidos escapam desta Terra, mas sabe-se lá para quais mundos... escapam pela loucura! Nunca respondi à pergunta que me fiz há muitos anos: “como eu enxergaria o mundo lá de dentro, do interior daquela figura magra e pequena... Ver as coisas com os olhinhos apertados do Manga de Colete [um dos doidos da cidade] — como seria?! Será que alguma felicidade poderia ser vista de lá?”
Os ingênuos creem em alma, mas nunca escapam; apenas conseguem viver na ansiosa futuração de escapes dos quais nunca terão consciência! Os ingênuos creem num mundo do qual não há volta, a menos que tudo se passe como Platão diz no mito de Er; há uma ida [a morte] e uma volta... mas passando pelo Rio do Esquecimento... então, que vantagem, de que adianta voltar com a mente obliterada, em branco? Eu, hein?
E assim, fica demonstrado [uma expressão do eu-Físico, é claro] que escapar — pela loucura, ou pela ingenuidade — implica em perder a consciência, implica em perder a capacidade de interrogar; essa espantosa característica humana! Não, não... o preço dessas duas modalidades de escape é muito alto!
Mas então... a recorrência me esmaga; eu-criança ainda sonho: ah, se eu tivesse uma alma... uma alminha humilde que fosse! Eu daria uma banana para o eu-Físico, pois como alma, eu poderia violar a Relatividade... viajar acima da velocidade da luz... viajar, eternamente, e não só interrogar, mas enviar as interrogações aos que ficaram [a sonhar] na Terra... Sim, viajar no sem-tempo de uma existência que nunca interrogasse a necessidade de... Existir, sim, mas sem essa palavra! Apenas ex-sistir, lançar-me em inteligibilidade!
Mas então, esta falsa conclusão... o que isto quer dizer afinal? Fica aqui o sinal desta interrogação — uma rendição ao temor noturno do eu-Criança?
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[Desterro, 18 de setembro de 2012]