Fisicamente, Fernão estava muito além dos meninos de sua idade. Esticara, crescera como massa fermentada, mas o intelecto, o intelecto tinha lá seus momentos de desalinho.
— Absurdo! Isso é um absurdo reprovar um aluno porque não sabe quem foi Lord Cochrane, protestou Yuri.
Almirante escocês!... Isso é cultura inútil para uma criança de doze anos! Qual interesse essa informação pode despertar numa pessoinha naquela idade? O pai, sim, tinha suas paixões pela navegação marítima. Mas o filho gostava de aviação. Yuri precisava descobrir se o filho tinha aptidão para alguma coisa. Precisava ocupar a mente e todo tempo do menino, para evitar travessuras em casa como, derramar xampu, abrir torneiras para ouvir o barulho da água... Sim, o barulho da água fazendo enxurrada na ardósia e arrastando formigas para o ralo. Mas Fernão controlava tudo; punha fim ao dilúvio, fechando a torneira. Todas as coisas lhe deviam fidelidade e obediência, do contrário, seriam punidas. Quantos carrinhos foram queimados em fogueira como as bruxas da Europa? Quantos socos e pontapés levavam as portas e paredes porque não saiam de sua frente.
Noronha não era nome de família. Talvez Yuri de Noronha tivesse alguma consanguinidade com Loronha, judeu convertido ao cristianismo católico, ou não. E quando lhe nasceu o primogênito, quis registrá-lo com o nome Gagarin. A mãe protestou:
—Não quero mais um ateu dentro de casa!
— Não vamos brigar por isso. O menino se chamará Fernão. Fernão de Noronha.
Olhar distante, desatento aos estímulos externos o menino parecia viver uma realidade diferente do mundo dos falantes. Ele tinha seu próprio vocabulário para dar nome às coisas, de modo que sua comunicação só era possível com a família e com as pessoas de seu relacionamento. A rede pública de seu país não estava plenamente capacitada para lidar com crianças portadoras de necessidades especiais e, se a família não o houvesse remanejado para um colégio particular, Fernão jamais seria aviador. Contudo, até realizar seus sonhos de pertencer à Esquadrilha da Fumaça, ainda teria que navegar muitas milhas em simuladores de voo.
O pai queria brincar com uma réplica do Titanic. O menino não gostou. O medo de naufrágio o atormentava. Seria trauma por causa do Almirante Cochrane? E puxava conversas estranhas ao perguntar.
— Pai, peixe gosta de picolé?
— Onde peixe vai encontrar picolé?
Fernão aprendia com facilidade aquilo que lhe interessava. Não era autista, isso não era. Mas, era cedo demais para atribuir a ele o diagnóstico de esquizofrenia. Os esquizofrênicos podem, ligeiramente, serem confundidos com hiperativos, autistas ou portadores de dislexia. Ele Fernão, parecia ter um pouco de cada uma dessas coisas. Por outro lado, entre os males, o menor, pensava o pai: “Tomara que o menino seja hiperativo”. E se tivesse que escolher um rótulo para o filho, jamais seria “esquizo”. Nunca o chamou de louco, ao contrário, incentivava-o a estudar dizendo: “Você é inteligente, meu filho. Você consegue aprender a ler”
Fernão insistiu na pergunta.
— Se um navio afundar em mar gelado a gente vira picolé?
— Vou te contar a história de um profeta que atirado ao mar, foi apanhado por um peixe gigante.
— Peixe grande comeu o profeta?
— Não comeu. O tubarão baleia é um peixe que mede aproximadamente, vinte metros. Dizem que sua boca é como uma sala de estar, e quando a presa também é grande, fica ali por algumas horas ou dias, antes de ser empurrada para as entranhas do animal. Julgando estar numa caverna, Jonas tateou até encontrar uma corda, talvez as cordas vocais da baleia ou as guelras. Isso provocou irritabilidade, uma espécie de cócegas na baleia, que, dando um espirro gigantesco, atirou o profeta na praia.
Yuri queria que o filho fosse aquele menino de quem se podia dizer: “É um prodígio”. Não era. Era belo de corpo e de alma, mas a mente tateava a escuridão das quatro paredes do mundo em que vivia. Alguma coisa na cabecinha dele não fora bem formada. O pai então se fazia menino, brincando com o filho. Sabia que precisava ser uma criança para entender o mundo das crianças. Precisava entrar no mundo dos diferentes e tentar trazê-los para o mundo dos “normais”, disse certa vez a psicóloga, quando analisava o desenvolvimento cognitivo de Fernão. Até certo ponto, ele Fernão, era perfeccionista, e muito criterioso naquilo que gostava de fazer. Com quinze anos, conversava com seus brinquedos e acreditava que os brinquedos eram capazes de obedecer às suas ordens de comando. Batia neles quando não o obedeciam. Apaixonado por navegação, Yuri mantinha em casa uma réplica do Titanic, a que sua mulher chamava lixo de Yuri. Na verdade, Yuri se ocupava em reproduzir artesanatos que aprendera com o pai em Recife, brincar com o filho, passar-se por tolo e desafiar os perigos nas grandes fantasias da imaginação. Enfim, curar o menino. Também nos quartos dos fundos de sua casa, os escritos de Jeremias, eram tratados como o lixo do Jeremias! Diariamente, o pai de Talita isolava-se para conversar com os livros. Sem nenhum escrúpulo, roubava frases de Guimarães Rosa, de Drummond, ou de quem quer que fosse e quando não os citava, diluía o linguajar deles nos livros que escrevia, dando algum realce para indicar que não era ele Jeremias, o autor. Ele dizia que era preciso despertar a pedra que dorme e as palavras que ficam ociosas nos dicionários.Enfim, burilar as pedras e as palavras e transformá-las em arte. Por isso, quando convidado a participar de uma coletânea, dificilmente se recusava, para que outros tivessem oportunidade de também participarem daquele “mar de idéias”.
Temendo reprimenda da mulher, Yuri guardou a sete chaves a certidão de nascimento do filho. O varão tinha o nome de gente famosa: Fernão de Noronha Capelo.
— Essa criança vai ter trauma com o nome, que, além de esconder a linhagem da família, servirá de galhofa aos colegas de escola — disse a mãe ao tomar conhecimento do registro do filho.
Realmente, o menino cresceu arrastando o peso de seu nome. Sofria agressões de todas as formas: moral, psicológica e às vezes, física. Conviveu na carne com os maltratos às pessoas diferentes.
— Absurdo! Isso é um absurdo reprovar um aluno porque não sabe quem foi Lord Cochrane, protestou Yuri.
Almirante escocês!... Isso é cultura inútil para uma criança de doze anos! Qual interesse essa informação pode despertar numa pessoinha naquela idade? O pai, sim, tinha suas paixões pela navegação marítima. Mas o filho gostava de aviação. Yuri precisava descobrir se o filho tinha aptidão para alguma coisa. Precisava ocupar a mente e todo tempo do menino, para evitar travessuras em casa como, derramar xampu, abrir torneiras para ouvir o barulho da água... Sim, o barulho da água fazendo enxurrada na ardósia e arrastando formigas para o ralo. Mas Fernão controlava tudo; punha fim ao dilúvio, fechando a torneira. Todas as coisas lhe deviam fidelidade e obediência, do contrário, seriam punidas. Quantos carrinhos foram queimados em fogueira como as bruxas da Europa? Quantos socos e pontapés levavam as portas e paredes porque não saiam de sua frente.
Noronha não era nome de família. Talvez Yuri de Noronha tivesse alguma consanguinidade com Loronha, judeu convertido ao cristianismo católico, ou não. E quando lhe nasceu o primogênito, quis registrá-lo com o nome Gagarin. A mãe protestou:
—Não quero mais um ateu dentro de casa!
— Não vamos brigar por isso. O menino se chamará Fernão. Fernão de Noronha.
Olhar distante, desatento aos estímulos externos o menino parecia viver uma realidade diferente do mundo dos falantes. Ele tinha seu próprio vocabulário para dar nome às coisas, de modo que sua comunicação só era possível com a família e com as pessoas de seu relacionamento. A rede pública de seu país não estava plenamente capacitada para lidar com crianças portadoras de necessidades especiais e, se a família não o houvesse remanejado para um colégio particular, Fernão jamais seria aviador. Contudo, até realizar seus sonhos de pertencer à Esquadrilha da Fumaça, ainda teria que navegar muitas milhas em simuladores de voo.
O pai queria brincar com uma réplica do Titanic. O menino não gostou. O medo de naufrágio o atormentava. Seria trauma por causa do Almirante Cochrane? E puxava conversas estranhas ao perguntar.
— Pai, peixe gosta de picolé?
— Onde peixe vai encontrar picolé?
Fernão aprendia com facilidade aquilo que lhe interessava. Não era autista, isso não era. Mas, era cedo demais para atribuir a ele o diagnóstico de esquizofrenia. Os esquizofrênicos podem, ligeiramente, serem confundidos com hiperativos, autistas ou portadores de dislexia. Ele Fernão, parecia ter um pouco de cada uma dessas coisas. Por outro lado, entre os males, o menor, pensava o pai: “Tomara que o menino seja hiperativo”. E se tivesse que escolher um rótulo para o filho, jamais seria “esquizo”. Nunca o chamou de louco, ao contrário, incentivava-o a estudar dizendo: “Você é inteligente, meu filho. Você consegue aprender a ler”
Fernão insistiu na pergunta.
— Se um navio afundar em mar gelado a gente vira picolé?
— Vou te contar a história de um profeta que atirado ao mar, foi apanhado por um peixe gigante.
— Peixe grande comeu o profeta?
— Não comeu. O tubarão baleia é um peixe que mede aproximadamente, vinte metros. Dizem que sua boca é como uma sala de estar, e quando a presa também é grande, fica ali por algumas horas ou dias, antes de ser empurrada para as entranhas do animal. Julgando estar numa caverna, Jonas tateou até encontrar uma corda, talvez as cordas vocais da baleia ou as guelras. Isso provocou irritabilidade, uma espécie de cócegas na baleia, que, dando um espirro gigantesco, atirou o profeta na praia.
Yuri queria que o filho fosse aquele menino de quem se podia dizer: “É um prodígio”. Não era. Era belo de corpo e de alma, mas a mente tateava a escuridão das quatro paredes do mundo em que vivia. Alguma coisa na cabecinha dele não fora bem formada. O pai então se fazia menino, brincando com o filho. Sabia que precisava ser uma criança para entender o mundo das crianças. Precisava entrar no mundo dos diferentes e tentar trazê-los para o mundo dos “normais”, disse certa vez a psicóloga, quando analisava o desenvolvimento cognitivo de Fernão. Até certo ponto, ele Fernão, era perfeccionista, e muito criterioso naquilo que gostava de fazer. Com quinze anos, conversava com seus brinquedos e acreditava que os brinquedos eram capazes de obedecer às suas ordens de comando. Batia neles quando não o obedeciam. Apaixonado por navegação, Yuri mantinha em casa uma réplica do Titanic, a que sua mulher chamava lixo de Yuri. Na verdade, Yuri se ocupava em reproduzir artesanatos que aprendera com o pai em Recife, brincar com o filho, passar-se por tolo e desafiar os perigos nas grandes fantasias da imaginação. Enfim, curar o menino. Também nos quartos dos fundos de sua casa, os escritos de Jeremias, eram tratados como o lixo do Jeremias! Diariamente, o pai de Talita isolava-se para conversar com os livros. Sem nenhum escrúpulo, roubava frases de Guimarães Rosa, de Drummond, ou de quem quer que fosse e quando não os citava, diluía o linguajar deles nos livros que escrevia, dando algum realce para indicar que não era ele Jeremias, o autor. Ele dizia que era preciso despertar a pedra que dorme e as palavras que ficam ociosas nos dicionários.Enfim, burilar as pedras e as palavras e transformá-las em arte. Por isso, quando convidado a participar de uma coletânea, dificilmente se recusava, para que outros tivessem oportunidade de também participarem daquele “mar de idéias”.
Temendo reprimenda da mulher, Yuri guardou a sete chaves a certidão de nascimento do filho. O varão tinha o nome de gente famosa: Fernão de Noronha Capelo.
— Essa criança vai ter trauma com o nome, que, além de esconder a linhagem da família, servirá de galhofa aos colegas de escola — disse a mãe ao tomar conhecimento do registro do filho.
Realmente, o menino cresceu arrastando o peso de seu nome. Sofria agressões de todas as formas: moral, psicológica e às vezes, física. Conviveu na carne com os maltratos às pessoas diferentes.