Apenas pó


          Os pandeiros, guitarras e tamborins silenciaram. Os trios elétricos jazem mudos em suas garagens. Os sambas, frevos e marchinhas são sons do carnaval que passou. As máscaras caíram. E as fantasias foram rasgadas. O nu - na festa momina a principal atração - deu adeus às passarelas; às avenidas; desapareceu das tevês. 

          Os artistas, com suas contas bancárias recheadas, creio que estejam todos a caminho da Europa, da China ou do Japão. E o folião? Na sua grande maioria, curtindo uma monstruosa ressaca, e imaginando como cobrir o rombo financeiro causado pelos seis dias de fuzarca.                      Mas, sem maiores preocupações, dizendo: "É isso aí, meu brother, paro ano tem mais."
         Entramos na Quaresma.  Que já foi um tempo de rigorosa penitência. O jejum e a abstinência eram obrigatórios. Vigiado de perto por vigários ranhetas, coitado do católico que não cumprisse essas duas exigências da Igreja de Roma, nos 40 dias que antecedem a quinta-feira da Semana Santa. 

          Hoje, as obrigações da Quaresma, o povão só as obedece, se as circunstâncias permitirem. Mas ainda recebe, com profundo respeito, as cinzas da quarta-feira. 
          Pela manhã, passei em uma igreja, e vi dezenas de católicos com uma pequena cruz cinzenta desenhada na testa. 
          E deu para ouvir o padre fazendo esta advertência: "Lembra-te homem que sois pó, e em pó vos haveis de converter." Desenrolava-se a cerimônia do "lembra-te homem"...
 "Memento homo, quia pulvis es, et in pulverem reverteris"
          Toda Quarta-feira de Cinzas, eu busco novas explicações para essa do pulvis es e do in pulverem reverteris, ou seja, que sou pó, e que em pó me converterei um dia.
          Este ano, recorri aos extensos sermões do Padre Antônio Vieira, pronunciados nas Quartas-feiras de Cinzas de 1672 e 1673, na cidade de Roma.  

          Observei, que até o eminente jesuíta se mostrava confuso com esta história do pó; embora procure justificá-la, com brilhantes argumentos teológicos.
          A certa altura, diz Vieira: "O pó futuro, o pó em que nos havemos de converter, veem-no os olhos."  Mas "o presente, o pó que somos, nem os olhos o veem, nem o entendimento o alcança."
           E sobre o pulvis es, ensina Vieira: "Acredita-se, porque isto foi dito por Deus ao primeiro homem e a todos os seus descendentes."

          Sobre o pó que voltaremos a ser - in pulverem reverteris - arrisco-me a fazer, aqui, um cauteloso e rápido comentário.
          No exercício da minha profissão, fui, certa ocasião, convidado a acompanhar, como advogado de acusação, à exumação e posterior traslado do corpo de uma jovem, vítima de um crime passional: morrera assassinada pelo noivo, que por ela morria de ciúmes. Reinava a expectativa de se encontrar a bala assassina.
          A finada, às folhas tantas dos autos, fora descrita como uma linda mulher;  dona de um corpo exuberante; uma gata...
          Rompido o lacre da sepultura - fechada há mais de cinco anos -, a surpresa: o chão frio e hostil da campa guardava, apenas, frágeis pedacinhos de ossos. O cadáver da fulana virava pó!
          Não havia uma prova sequer de que, naquela cova, havia sido enterrada uma garota, cuja beleza física provocava ciúmes; a ponto de levar seu noivo a tirar-lhe a vida, com um certeiro tiro. 

          Na hora da exumação, olhando demoradamente para o nada, diminuiu bastante minha dificuldade em acreditar que um dia volto a ser apenas pó - in pulverem reverteris.
Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 21/02/2007
Reeditado em 17/12/2019
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