AS SUTILEZAS DO AMOR, A ESMO.
Por Carlos Sena


 
Hoje, de borestia, resolvi sair de casa a esmo. Dependendo do lugar onde a gente se encontra, sair assim é bom – coisa que é própria dos que se gostam de ver a si mesmos assim, a esmo. Saindo assim a gente tem oportunidade de não ver. De não escutar. Tem oportunidade de não ser ninguém.
No caminho do meu trajeto sem destino, eis que tive que dar um pulo para não matar uma lagartixa que ia passando em minha frente. Andando de carro a gente corre o risco de matar gente e eu estava ali, a pé, livrando da morte uma lagartixa. Atravesso a avenida como manda o figurino: pela faixa. Mas um carro quase me acertou o traseiro, cheguei a sentir mesmo um vento quente no glúteo não tivesse eu sido mais ágil que o carro. Recuperado entro numa sorveteria e peço um sorvete. Casquinho ou copo, perguntou o garçom. Coco, respondi. Ele insistiu: mas, coco no casquinho ou no copo. No casquinho, respondi. No pouco tempo que fiquei ali tomando meu sorvete, observei como até as coisas mais simples como tomar um sorvete se revestem de alguma complexidade. Pensei comigo: imagine o que não deve ser ver um médico abrir uma pessoa, operá-la e devolvê-la com vida. Mas, logo saí em direção a falta de rumo quando, de repente, estava a uma rua do shopping. Acho o shopping a pior coisa para quem está saindo a esmo, de borestia. Porém, esse raciocínio me instigou a dar uma chegadinha lá. Enquanto eu passeava vendo loja e mais loja, observei que os idosos fazem festa lá dentro. Isto eu não imaginava, confesso. Percebi que eles, intuitivamente, lá se encontram como se já houvesse uma agenda habitual. Não. Detalhe: estavam lá, sem netos por perto, bem serelepes. Adiante, dou de cara com um cinema. Cinema de shopping é aquela coisa sem graça e cheia de luzes. Lembra um pouco as “casas da luz vermelha”, só que sem glamour. Pode ter cara de tudo, menos de cinema, mas, é assim que o mundo é feito, pensei. Para minha surpresa, um cartaz me lembrava os de antigamente quando eu era criança. Anunciava o filme “As Sutilezas do Amor”, na modalidade “sessão de arte”. Ora, pra quem sai de casa a esmo, assistir a um filme desses, meio água com açúcar é fantástico. Logo me corrigi: só porque fala de amor é garapa, Carlos? Respondi-me: pois é. Nada maior no mundo do que um grande amor. E não pode haver no mundo um amor grande sem que seja construído na base das “sutilezas”. Não basta dizer que ama, mas ser o próprio amor em atitudes todos os dias – eis uma sutiliza. Não basta o caminhar de mãos dadas sem a sutileza da comunhão das almas. Criei coragem e fui tirar o ingresso. Agora a pipoca, pois, cinema sem pipoca não dá. Mas não tinha pipoqueiro na porta do cinema. Tinha um balcão cheio de carboidratos que eu não podia comer por conta da minha diabetes. De repente, vi um rapaz passar com um balde de pipocas. Vi onde vendia e fui comprar, mas não tinha em menor quantidade, então desisti. Mas fui mesmo sem pipoca. Tinha no bolso umas balinhas diet que me quebraram o galho. Adentrei. O filme era francês e legendado. Não era garapa como pude imaginar. Mas, não faltaram sutilezas no amor da linda história apresentada.
No trajeto pra casa, mal consegui olhar em volta. Já fui direto para a saída principal do shopping. Lembrei  então, que eu estava de borestia, a esmo, mas já não havia tempo para eu me encontrar com quem não marquei. Para olhar para onde não costumo ver. Para eu escutar as vozes que não me são familiares aos ouvidos no dia a dia. Cheguei tão leve que nem me toquei que o celular não tocava. O celular é assim. A gente toca nele e ele toca pra nós mesmo sem a gente querer. Quando ele silencia a gente logo sente.  Dei conta de que ele estava quieto porque eu o coloquei no silencioso e não me lembrei de retornar. Nessa noite, dormi como quem não tem pecados.