Quadros do cotidiano

O ônibus vai andando rápido e pela janela eu vejo vidas passando, pessoas dos mais variados tipos, brancas, negras, velhas e jovens. No cotidiano da cidade grande esta movimentação aparentemente insana e desordenada, não chama mais a atenção, porém, em meio a toda esta balburdia algo atrai meu olhar.

Parecendo indiferente a todo o caos que o cerca, tranquilamente eu vejo em um ponto da calçada um cachorrinho deitado. Sem raça definida, pelos claros encardidos, magro e muito maltratado, feio mesmo! O que chama minha atenção é o conjunto da cena, parecendo um personagem de um quadro clássico, o pequeno animal está enrodilhado sobre uma mala de corino marrom velha e suja, tendo ao lado um par de sandálias de salto alto também velhas e desgastadas,

O ônibus arranca e a viagem prossegue, mas o pequeno cão não sai de minha memória, penso em sua tranqüilidade e em todas as possibilidades e histórias que podem cercá-lo. Quem será seu dono (a)? Que fragmentos de uma vida estarão contidos naquela mala? E o par de sandálias? Será um meio de lembrar tempos felizes e de vaidade, ou apenas mais um objeto recolhido em alguma sacola de lixo por alguém de quem a vida roubou tudo.

Em meus pensamentos vejo o pequeno cão como uma versão moderna de Cérbero, pois tal qual o mitológico guardador dos infernos gregos, este pequeno personagem parece proteger tudo o que restou na vida ao seu dono, talvez suas últimas vestes, quem sabe alguma fotografia amarelada de um momento feliz, a carta de um ente querido, pequenas sobras, alguns restos sombrios.

Em nossa vida moderna, agitada e quase sempre cruel, somos muitas vezes vitoriosos, mas esquecemos sempre de olhar de lado com medo de ver a imagem da derrota estampada em um rosto próximo. Vemos mendigos, alcoólatras, meninos de rua e demais representantes daquilo que nossa sociedade consumista chama de “os fracassados do sistema”, apenas como meros objetos da paisagem urbana decadente.

Aquele cão, aquela mala, quem sabe aquelas sandálias, são coisas tão pequenas e irrelevantes que não valem uma segunda olhada ou qualquer preocupação. Mas a miséria que aqueles objetos retratam é na verdade, muitas vezes, resquícios que deixamos para trás em nossa corrida louca em busca do sucesso e dá glória, e que por algum descuido esquecemos-nos de empurrar para debaixo do tapete ou para o canto da sala. Estes objetos representam tudo o que o não pode aparecer na foto ou ser citado na autobiografia dos vitoriosos de nossa sociedade politicamente correta.

O ônibus prossegue sua viagem, eu prossigo em meus devaneios tolos, tempo perdido em pensamentos sem um ponto de ancoragem, divagações ou interpretações pessoais sobre coisas que vejo pela janela, mas sobre as quais não tenho nenhum conhecimento de fato. Apenas impressões de quem olha de longe a vida alheia, tentando criar hipóteses e teorias, mas na verdade fugindo de olhar para dentro de si mesmo para não perceber ou reconhecer suas próprias sombras e medos.