DDD - Diário de Derrotas [35]

07h30m

Depois de três sonequinhas maravilhosas e muita relutância e destempero, consigo sair da cama. Hoje, com certeza, será um dia turbulento, daqueles que me dão vontade de voltar pro saco do filho da puta do meu pai.

07h35m

Como de costume, não há muito que se comer, não há tempo de buscar algo para comer, não há vontade de comer. Em contrapartida, há um peso na região da barriga; peso que deriva do enchimento dos meus intestinos.

07h40m

Jogo talco nas meias e nos tênis, procuro alguma camiseta decente, xingo porque não encontro nenhuma, pego a toalha e vou pro chuveiro. É cada vez mais proeminente a certeza de um dia terrível.

08h10m

Se eu acreditasse mais fortemente em Deus, creio que eu consideraria um verdadeiro milagre eu ter conseguido sair de casa assim, tão pontual.

08h20m

Estou no ponto de ônibus, esperando a lotação que me leva até o Metrô Itaquera.

08h25m

Continuo no mesmo lugar. Agora o ponto está apinhado. A lotação está atrasada.

08h35m

Cá estou, sentado no chão, com um cão sarnento tentando lamber meu rosto. Não há menção da maldita lotação passar. E estou oficialmente atrasado.

08h43m

Estou sentado no mesmo lugar, olhando a lotação que acabou de chegar e sair. Não havia mais espaço pra meio cu dentro dela quando chegou, mas as pessoas são determinadas e insistentes, e algumas delas conseguiram entrar. Ao ver que não tinha essa ambição toda de ir colado numa porta com a bunda de um nego qualquer na minha cara, dei de ombros e - sob o olhar de um velho manguaceiro da vila - voltei pra cá.

08h45m

Mormaço. O dia cinza que de início pensei que se transmutaria em um dia frio, se tornou um pequeno forninho. Continuo sentado nesse degrau, e o velho bêbado está parado na minha frente, falando comigo. Estou com os fones, com volume alto; não consigo entendê-lo. Mas ele está imediatamente à minha frente, e leio em seus lábios que ele está insinuando que eu devo fazer a barba. Ontem duas pessoas foram mandadas embora na minha frente e eu provavelmente assumirei o serviço de uma delas por tempo indeterminado; hoje cedo teria uma reunião com uma das sócias do escritório; estou atrasado; estou atrasado demais, e tem um filho da puta na minha frente, bafejando álcool na minha cara e eu tenho que, sim, respirar fundo, disfarçar, fingir que não é comigo e olhar para os lados, pra cima, pra baixo, pra conter essa vontade toda de acertá-lo com a sola do pé num chute de baixo pra cima e arrastá-lo até a quina da guia pelo pescoço e bater sua cabeça nela até que o sangue saia em esguichos - respiro.

08h50m

A lotação enfim chega e eu consigo entrar.

09h20m

Tenho dez minutos pra atravessar a cidade e chegar na minha mesa, porém estou apenas na plataforma do Metrô. Eu costumava pegar o trem e ir até a Luz e fazer um sem fim de baldeações que culminavam em caminhadas morosas que pareciam que desembocariam no inferno (uma verdadeira pena que não); agora pego o Metrô e vou sentadinho na minha, dormitando, lendo, e faço duas baldeações onde ando pouco.

09h23m

Perdi os assentos das janelas pra quatro gordas. Chega a ser inacreditável. Mas, tudo bem. Pelo menos estou sentado. Fodido, mas sentado no Metrô de São Paulo.

09h35m

Estava meio-dormindo meio-acordado quando abri os olhos enquanto a porta se abria e entrava uma senhora praticamente usando um guarda-chuva de muleta. Ela veio em minha direção e imediatamente cedi o lugar. Com um pouco de dificuldade, porque ela, com a dificuldade de locomoção, precisou de um espaço pra manobrar a bunda e eu acabei tendo que manobrar também e isso incomodou uma favelada que estava em pé, que ficou cheia dos muxoxos com a movimentação. Soltei meu próprio muxoxo, coloquei a mochila entre as pernas e tentei pensar em algo decente. Não consegui.

09h37m

No outro assento similar ao que eu cedi pra velha mulher, do outro lado da porta, há um rapaz sentado, debruçado na armação de ferros. O assento que ele está fingindo que dorme é preferencial - e há uma velha na frente dele. Perpassa pela minha retina um Rafael Abreu caminhando até lá e fazendo o dito cujo cuspir os dentes depois de uma joelhada bem dada.

09h50m

Esse cara - esse fulaninho de terno e gravata, com pinta de segurança de porta de puteiro - que está na minha frente já olhou torto duas vezes para trás, incomodado com alguma coisa. Então quer dizer: a Madre Teresa está em um horário que o fluxo de pessoas ainda é grande, em pleno pré-desembarque da Estação Sé, e não quer ser tocada. Resmungo um "vai tomar no cu" e empunho um pouco mais a mochila nas costas dele.

10h15m

Piso na Avenida Paulista. Quarenta e cinco minutos atrasado.

10h17m

Abro a porta do escritório e já me deparo com a sócia e com os dois novos funcionários. Quer dizer. Tenho fome, percebo. Sou apresentado a ambos. Me enfio na minha cadeira, ligo o computador e sinto umas pontadas no intestino...

11h00m

Como não tinha nada de novo nas contas, terminei com as guias rapidamente e estou sossegado - mas um "sossegado" entre mil aspas.

12h00m

As atribuições de um dos rapazes que foi despedido vieram pro meu colo. Atividades que, inclusive, já havia feito por algumas vezes, por causa da quantidade. Que era muita. Que continua sendo muita. E é uma coisa chata de se fazer. Trabalhosa, pedante, nonsense e que, invariavelmente, dá erro. E retrabalho.

Quero morrer...

13h30m

Desligo o monitor do meu computador e desço pra almoçar. Na portaria, um conhecido, que estava entrando, me cumprimenta e pergunta se estou indo almoçar. Entre dentes, digo que sim.

- Na moral, faz uns cinco minutinhos aí pra eu ir com você? Só preciso deixar a mochila lá em cima.

Contrafeito por demais, digo que sim. A hora sagrada do almoço solitário, hora de reorganizar os pensamentos e se livrar do fardo trabalhista - podada por um semi-conhecido!

Atravesso os poucos metros de mármore da entrada do prédio, paro na porta, olho uns rabos e saio em direção ao restaurante.

"Eu tinha que ir pagar uma conta no banco", diria eu mais tarde, em minha defesa.

13h35m

- O de sempre, chefe?

- O de sempre.

- Coca gelo e limão?

- Sim.

- Vai o feijão hoje?

- Vai sim.

Não entendo o porquê de perguntar sobre "o de sempre" e repetir as mesmas perguntas, sobre as coisas que já estão inclusas no "de sempre".

13h37m

- Gelo e limão, chefe? - Pergunta o garçom novo, equilibrando a bandeja com uma Fanta, uma Coca e dois copos com gelo.

- Sim.

Ele pega a Fanta e vai colocando na mesa.

- Opa, o meu é a Coca!

- Opa, a Coca, né?

- É.

- Gelo e limão?

- Sim...

Ele bota o copo na mesa. Depois, a lata, já com o dedo no anel.

- Não abre.

Eu digo.

- Não abre não!

Eu repito.

"TSS". Ele abre.

- Oi? - Pergunta ele, despejando o refrigerante no copo com gelo até a boca - sem limão.

- Nada não...

13h45m

- Patrão! - Aceno pro gerente.

Ele vê que minha comida ainda não chegou e corre até a cozinha.

13h48m

A comida chega. O feijão, frio.

...

14h20m

- Então eu fechando um plano trimestral de musculação e muay thai, e comprando duas camisetas pro treino, fica quinhentos reais?

- Sim.

- Beleza... Depois eu volto aí! - Digo, cínico, e saio da academia que ambiciono treinar há mais de um ano.

15h30m

Minha cabeça lateja. Dói. Está calor. Estou com ânsia. E tem esse clima de tensão aqui, por causa da reunião vindoura. Só queria ter nascido rico, ou então ter nascido em alguma cidade calma do interior do Paraná, com ar puro, montanhas, um centrinho que tem duas ou três opções de baladas e/ou bares e tal. Mas, não, né? Tinha que nascer como mera bactéria incrustada no esfíncter do capeta...

17h30m

Minha alma foi sugada como se fosse um caralho doce, doce. Amanhã começaremos todos a entrar no horário em que eu normalmente estava entrando na lotação. O fluxo de pessoas nos transportes todos é maior, tanto na ida quanto na volta. O sono é maior. A modorra é maior. A fome é maior. Toda a alteração de uma rotina - também biológica - em prol da empresa, do sistema, do dinheiro, do sustento das nossas carcaças despendiosas, do nosso entretenimento efêmero, de nossos parcos momentos de sossego monetizado...

18h30m

Tanta coisa por fazer e eu não consigo fazer nada. Não consigo raciocinar. Só quero ir embora, encher a cara de cerveja no meu quarto e resmungar até a hora de dormir.

18h45m

Fui incumbido de, para ontem, providenciar um relatório que deve ser feito todo mês e que foi negligenciado nos últimos três meses. Ótimo.

19h00m

Essa é a hora que eu deveria estar saindo daqui, porém estou passando a última raspa do cream cheese na última torrada e virando um copão de Mupy de maracujá, bem gelado.

19h40m

Eu tento trabalhar quietinho, mas não dá, não dá: de dia, quase todo dia, durante o dia inteiro, um grupo de bolivianos que saíram do quinto dos infernos, montam um acampamentinho na frente do prédio e ficam tocando flauta - sei lá que porra de instrumento de sopro é. E eles fazem coveres de clássicos da música, cujo nome de todos não me lembro, mas dentre eles está a música do Cigano Igor da novela.

E o repertório é o mesmo todos os dias, o dia inteiro.

E aquela flautinha penetra no meu crânio de uma tal maneira que começo a clamar pros céus mandarem um caminhão de dinheiro pra essa raça desaparecer daqui ou então mesmo um raio certeiro em todos eles.

Como eu tentava dizer, sobre trabalhar quietinho e tal: tem um guitarrista solitário solando alto aqui na porta do prédio. Essa rapaziadinha criada pela avó não tem mais o que fazer da vida e opta por perturbar a paz, que já é tão escassa nos dias de hoje em grandes centros urbanos... E eu me resumo a desejar que um dos prefeituráveis de repente proponha um programa que, discretamente, rechace gente barulhenta em vias públicas.

20h35m

Bom, consegui finalizar o mês passado no tal relatório. Só faltam os outros dois anteriores. E também o deste mês. Estou vesgo de tanto número e planilha.

Hoje, sem dúvidas, está sendo um dia tão ruim que, Johnny Cash, se estivesse vivo, inclui-lo-ia na letra da "Man In Black" em minha homenagem.

21h00m

Foi com muito custo que consegui me desvencilhar da carência e da avalanche de perguntas do porteiro e agora me vejo, enfim, na rua. Faz frio, agora. Caminho até o fast-food que com certeza me trará um prejuízo na saúde. Bom, foda-se.

21h10m

Até esse lanche que superestimei durante meses a fio até criar a coragem de vir comer está ruim, insosso... Que desgosto.

21h25m

Livre é o homem que tem autonomia para decidir a porta de metrô que entrará sem que haja a interferência - mesmo que inconsciente - de um par de pernas, de seios, de panturrilhas... Não é o meu caso, no caso da inconsciência.

22h10m

Estou no penúltimo banco da lotação; naquele que fica paralelo à porta. Uma mulher gostosíssima, acompanhada do namorado, acabou de entrar. Ela passa a catraca, e ele não desgruda dela. Ela cruza o corredor. Ele no encalço. Ele fica de pé nos degraus da porta e ela fica de costas pra mim. Ele alisa todo aquele hemisfério glúteo e vai examinando a cara de cada homem ali presente, pra ver se algum espertinho está olhando para sua propriedade. E ele continua alisando, alisando, alisando... Fecho os olhos. Vejo planilhas. Abro os olhos. A mão, passeando por toda aquela redoma de carne. A calça jeans socada. A cinturinha fina. Desnecessário. Fecho os olhos. Vejo o dia de amanhã. Abro. Vejo um semi-conhecido passando pela catraca. Fecho os olhos. E assim os mantenho.

22h40m

Chego em casa. Abro a porta e já tenho um sobressalto daqueles. Bato a porta e acendo as luzes, como quem não precisa falar mais nada. Minhas gatas me ignoram sei lá por quê. Dou de ombros. Pego a toalha, uma cueca do varal e vou pro banho. Enfim deu vontade de saciar certas necessidades fisiológicas. Olho ao redor do banheiro. Calcinhas. Calcinhas penduradas. A gente cede a casa pra parente agregado e é isso que ganhamos em retribuição: calcinhas penduradas. Adoro arriar uma calcinha, sempre gostei, mas a visão de calcinhas penduradas em banheiro - no banheiro da minha casa - é nojenta. Sento na privada e abro um livro de poesias do Fernando Pessoa. Termino o serviço e constato que há apenas alguns centímetros de papel higiênico. E nenhum rolo na reserva.

Caralho.

12/09/2012

00h56m

Depois de ter perdido duas horas de sono escrevendo isso, enquanto degustava um pote de uva passa, bebendo água morna e ouvindo Racionais, constato que: preciso de uma vida nova. Ou pelo menos de novidades boas, não só de má notícias sobrepondo más notícias, de ter que lidar com beócios com conversa rasteira todo santo dia, a merda toda, rubra, pestilenta, a fumaça marrom evolando, assomando, descendo, descendo até a hora de dormir e aguardar um outro dia igual, dias narcisos que se encaram indefinidamente no espelho.

11/09/2012

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 12/09/2012
Reeditado em 12/09/2012
Código do texto: T3877546
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