CHICO BUARQUE E DEUS
“Eu sou luz; ah! Fosse eu noite!
Mas esta é a minha solidão:
que estou circundado de luz.
Ah! Fosse eu escuro e noturno!
Como desejaria sugar os seios da luz!”
(Nietzsche)
Os primeiros versos do último disco do Chico são: “Hoje topei com alguns conhecidos meus/ Me dão bom dia: ‘Bom dia!’, cheios de carinho/ Dizem pra eu ter muita luz, ficar com Deus/ Eles têm pena de eu viver sozinho...”. Ateu, Chico Buarque nunca gozou de muito prestígio ou respeito frente à massa crente, sobretudo frente aos radicais. Como um mundano ousa cantar versos como “Pai, afasta de mim esse cálice”, citando o próprio Cristo? Heresia das brabas, aos ouvidos daqueles que não entenderam a mensagem contida naquela canção e a quem ela era direcionada. Quase imperdoável na visão dos evangélicos foi ouvi-lo falar como se Jesus fosse. Não é difícil encontrar crentes que odeiem Chico, e o mesmo ocorre em ralação a Caetano Veloso. No disco ‘O Grande Circo Místico’, em parceria com Edu Lobo, há a belíssima canção ‘Sobre todas as coisas’ – e ela retorna no disco ‘Paratodos’ – com versos que falam sobre pecado e perdão, criatura e criador, e questiona uma suposta crueldade divina. E isso não é assunto para andar na boca de um descrente, alegam. Eu, por minha vez, sempre fiquei muito atento quando artistas como Chico ou Raul Seixas, entre muitos outros, citam Deus. Uma oportunidade de compartilhar e comparar minhas indagações. E se a canção de abertura do novo disco não se refere à pessoa de Deus propriamente, ela é tocante no que diz respeito à solidão de um homem ateu, e também vislumbra uma chance de felicidade e força, apesar disso, dessa vida não-religiosa. No último verso da canção, Chico canta: “...Mas eu não quebro, não, porque sou macio”, respondendo à possibilidade de o “inimigo” estar à sua espreita, querendo quebrá-lo, ao que o autor se defende não usando de “dureza”, mas, sim, de “maciez”. Em outros versos, ele fala de uma vontade momentânea em ter uma religião e de adorar uma “mulher sem orifício”, numa clara referência à imagem da Virgem Maria. Propondo, por um momento, talvez, uma deserotização da vida, algo ao qual, a mim não cabe fazer juízo de valor, dada a complexidade do tema: há na vida possibilidades inúmeras que se intercalam ou até mesmo interagem. A oposição entre sexo e religião, entre libido e virtude... há de haver um meio termo mais confortável entre essas forças que regem a vida, baseadas no movimento vertiginoso do mundo dos desejos ligados aos básicos instintos e, noutra via, na paz estática da fé.
Pois é. Pode-se rasteiramente questionar: estaria o ateu, burguês, solteiro e alcoviteiro Chico “fraquejando”? Seria sintoma de uma suposta solidão? Da solidão de um ateu, da solidão de um velho solteiro... Não seria um homem velho e solteiro alguém que tem amigos, mas vive, na verdade, só? Numa ou noutra condição, o genial cantor e compositor nos abre sempre janelas para novas possibilidades. Como é bom poder ouvir uma nova canção de Chico, e daquelas que fazem refletir...
E eu? Como fico diante do que tenho ouvido? Dialogo hoje com Chico Buarque. Com drásticas adaptações, no que ferem as nossas respectivas condições sociais muito distintas, eu me coloco em seu lugar e o coloco no meu, não sei bem. São tantas coisas na cabeça... Engraçado e prazeroso ouvir de um conhecido a frase “Fica com Deus!”... Como é bom, às vezes, ser alvo de piedade... Pois piedade é um tipo importante de interação. Quem duvida que é melhor despertar piedade do que ódio? Quem? Quem nunca sentiu afeição pela piedosa Virgem? Quem jamais temeu o “inimigo”? Quem não deseja ser forte e inquebrantável? Chico, quando diz no derradeiro verso da canção que não se quebra porque é macio, pode estar dando uma dica preciosa pra gente. Dizendo que mais importante que a rigidez é a maleabilidade. Esta, sim, seria uma característica dos fortes. Como não acontece com uma cola super bonder, que é capaz de colar uma rígida e pesada estatua – pois a famosa cola cria uma liga muito dura em contato com o oxigênio –, mas não funciona tão bem no caso de um tênis. Neste caso a cola quebra em poucos dias. E, convenhamos, nenhuma estátua pesada e dura pode valer, na verdade, mais do que um velho e confortável tênis. Assim, a vida precisa de outros tipos de cola. Outras ligas mais eficientes na função de juntar os pedaços de nós mesmos e das coisas queridas que nos são quebradas pelos dias. Que a vida seja macia. Que assim sejamos. Para que se possa suportar o peso e a dureza de viver.
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Ouça a música "Querido diário": http://multishow.globo.com/musica/chico-buarque/querido-diario