A Cinderela Contemporânea

Ela se encara no espelho: não é o suficiente para se satisfazer. Para satisfazer algo que grita em seu âmago, pedindo mais, querendo mais. Ela estica o braço ao céu; punho curvado para dentro; espoca o flash à queima-roupa, no rosto: FLASH. Ela olha o visor da câmera. Não está satisfeita com o resultado. Portanto, repete o processo duas, cinco, dez vezes, até que consegue um enquadramento que destaca suas sobrancelhas feitas, suas unhas coloridas, da moda, seu batom com brilho, esmiuçadamente exibido num bico em riste apontando pra lente; seu blush exagerado, seu rímel caro, bem passado, seus brincos novos e seu decote matador - a foto perfeita. Sorri consigo mesma e amaldiçoa a ineficiência da tecnologia em pleno ano 2012, por não permitir foto com cheiro. O próximo passo - uma vez que o emplastro de produtos que fedem já foi feito - é tirar foto no espelho de corpo inteiro. Exibir o look, o look que fará dela a mais mais. Aí essa garota, que está um pouco atrasada para a baladinha, ajeita o espelho de acordo com a melhor luz e: empina a bunda e: faz bico e: põe a mão na cinturinha, torce o pezinho, manda beijinho pro próprio reflexo, numa comovente manifestação de um amor-próprio que abunda poros afora. Após todo o registro de todo o aparato que nenhum homem com intenções além-pelvis notarão, é a hora de conectar o cabo USB e upar a foto nas redes sociais. Isso, claro, se ela não estiver atrasada. Caso esteja - e todas suas amigas, todas iguais, baterem à sua porta, já previamente munidas da trilha sonora que rasgará a noite, com seus celulares à tiracolo - o upload pode ficar pro outro dia.

E ela vai. E bebe. E canta. E grita. E flerta.

E poreja. O blush borra. O cabelo desgrenha.

E ela abraça o estranho que a abraça.

E eles se amam na névoa da embriaguez, da felicidade.

E a música despida de qualquer estofo intelectual ecoa por seu cérebro.

E ela sorri, sorri, sorri, sorri... Sabendo que em casa, diante do espelho, com o rímel borrado, com os cílios colados, de ressaca, sozinha, se sentirá vazia, vazia, vazia...

10/09/2012 - 23h20m

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 10/09/2012
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