Minhas recordações para sempre Ave Maria
(Flavia Costa)


Agora são dezoito horas, o rádio está ligado. Como acontecem todos os dias nesse horário, a programação é interrompida pela oração da Ave Maria. Para muitos é um momento de orar, para outros apenas de fazer o sinal da cruz e, para tantos outros, passa despercebido. Não para mim. Quando tenho o privilégio de ouvir a Ave Maria às 18 horas é como se uma porta de recordações se abrisse. Eu sorrio relembrando dois momentos que ligam a hora do Angelus a duas pessoas queridas que já partiram.

O primeiro momento Ave Maria em minha doce lembrança está ligado a minha avó. Ela estava doente e eu fui visitá-la no hospital. Naquele dia, ela estava um pouco debilitada, pois tinha um dreno no pulmão para retirar água da pleura. Tínhamos conversado um pouco e ela fechou os olhos para descansar. Eu fiquei ao seu lado, olhando-a, e sentindo pela sua doença e sua dor. Pensei que estivesse dormindo, mas de repente, vovó fez o sinal da cruz. Eu não entendi o porquê daquele gesto, assim, do nada. Preocupei-me um pouco, pensando que podia estar acontecendo algo e ela estar se entregando. Mas sua expressão era a mesma de momentos antes. Foi então que percebi que o sino de uma igreja próxima badalava, olhei para o relógio; sorri, eram 18 horas.

Sim eram 18 horas, e minha avó, em sua enfermidade com as dores e consequências que esta  lhe causava, fazia o sinal da cruz, ali no leito do hospital.
Eu não sei como ela sabia que horas eram e, muito menos se o seu gesto se devia a fé ou ao hábito. Não tenho como saber se naquele sinal da cruz ela pediu para que se curasse e voltasse para casa. Afinal, aquele era um momento só dela. Mas aquele instante, que só eu vi e, talvez, se não fossem as circunstâncias, nem me lembraria, tornou-se especial para mim.

Alguns meses depois ela se foi. Partiu em um final de tarde, não sei precisar o horário, mas sei que foi bem próximo das dezoito horas. Tive a sorte de vê-la neste dia. Ela já não estava mais consciente e por pouco não fui eu a pessoa a estar com ela em seu último suspiro. Recebi primeiro a notícia que tinha piorado e, logo em seguida, que tinha nos deixado. Chorei e tremi de dor e tristeza, mas após acalmar-me um pouco, lembrei-me dela fazendo o sinal da cruz e, entre lágrimas, sorri.

O outro momento Ave Maria aconteceu alguns anos depois e, faz parte dos últimos dias que vivi com meu tio. Era começo de ano e ele e alguns familiares foram comemorar a passagem do ano no sítio da minha família. Ele voltaria para a cidade como todos, assim que terminasse o feriado, mas por um problema no carro teve que ficar até que esse fosse consertado.

Terminado o feriado, no fim da tarde, todos retornaram a capital. No sítio só ficamos eu, minha mãe, meu pai e meu tio. Começo de ano é época de horário de verão e dia ensolarado até mais tarde, por isso, minha mãe ainda ficou lá no quintal mais um tempo, organizando e limpando. Eu, meu pai e meu tio voltamos para dentro de casa e ficamos sentados à mesa da cozinha, lendo e conversando enquanto ao fundo tocavam músicas de um CD que meu tio havia colocado. Quando minha mãe entrou em casa, o sol ainda estava claro, e, justamente naquele instante, o CD tocava a Ave Maria. Ela não pensou duas vezes e fez o sinal da cruz. Nós três nos entreolhamos e caímos na risada. Sem entender, ela perguntou qual era o motivo de tanta gargalhada. Eu falei, mãe olha a hora já são mais de sete. E ela: uai, mas está tocando a Ave Maria. Meu tio então explicou que era um CD que havia gravado.

Eu e meu tio choramos de rir por muito tempo. E durante os dias que ele passou ali com a gente, conversamos e nos divertimos e, sempre ríamos ao lembrar da minha mãe fazendo o sinal da cruz. E meu tio era daqueles que quando achava algo engraçado ria do ocorrido como se tivesse acabado de acontecer e saia contando pra todo mundo. Eu já sabia: aquele sinal da cruz, por conta da Ave Maria, seria história a ser contada no próximo encontro familiar. Claro, antes de contá-la ele iria rir pra caramba enquanto todos estariam o observando, aguardando para saber o motivo de tão lagrimosa gargalhada.

Não deu tempo dele contar. Que eu saiba, não houve encontros familiares após a comemoração de início de ano. E, menos de três meses depois, subitamente ele partiu. Aqueles dias no sítio foram os meus últimos momentos com ele. Guardo todos com carinho. Sua alegria ao cavar a terra para fazer uma escada, eu passando citronela em suas costas e braços para espantar os insetos e, principalmente, ele chorando de rir por conta da minha mãe fazendo o sinal da cruz enquanto tocava a Ave Maria. Quis o destino que ele não pudesse, a seu modo, contar essa história e, juntos eu e ele, cairmos na gargalhada novamente.

Essas são as recordações que a Ave Maria das 18 horas me traz. Eu não rezo, geralmente, não faço o sinal da cruz, apenas recordo com carinho dessas duas pessoas que amava. Não importa quanto tempo passe, sempre que no rádio ouvir tocar a Ave Maria, em minha mente estará presente o gesto da minha avó, que só eu vi, e as gargalhadas do meu tio, que ele não teve tempo de compartilhar.

Agora são dezoito horas, o rádio está ligado. A programação é interrompida pela oração da Ave Maria. É a hora de lembrar do meu tio e da minha avó.