DIVAGAÇÕES SOBRE A MEMÓRIA
Deus fez o homem, mas não o fez com memória. A memória surgiu depois. Há duas hipóteses para o seu aparecimento. A primeira: quando o homem pecou, Deus o expulsou do Paraíso e lhe imputou um sofrimento eterno e hereditário. O castigo consistia em passar a ser mortal e a ser dotado de uma coisa chamada memória, para que trouxesse sempre vivo o seu tropeço primeiro e nunca se esquecesse, principalmente, dos sofrimentos vindouros. A segunda: o Diabo, que sempre perscrutou os passos de Deus como um cão faminto, num segundo de distração do Criador, foi sorrateiramente onde estava aquele boneco de barro ainda sem o sopro nas narinas e... meteu-lhe na cachola um trocinho imaterial, um lampejo, chamado memória – pelos mesmos motivos que Deus, pois o Diabo também já sabia que o homem cometeria o pecado mortal.
Qualquer que seja a hipótese correta, a memória não é lá mesmo uma coisa muito boa. Está acima do homem, comanda-o, subjuga-o, faz com ele sinta todas as dores passadas, todas as ações impensadas, todas as inalcançáveis e frustrantes, tudo o que já lhe foi bom e não existe mais, tudo o que foi uma droga e poderia ter sido melhor. A memória dói como doem as mais profundas feridas abertas na carne. A memória enlouquece. A memória cava fundo na alma.
Quem nunca soube o mal que a memória pode causar, espere até perder alguém que ama. É do que ela mais gosta para ferir. Parece automático: basta o amado ou a amada lhe dizer adeus, para que ela puxe a fita da sua cabeça e faça rever, da maneira mais viva que possa existir, tudo o que foi bom, tudo o que foi mal, tudo o que simplesmente foi. E é como se se exibisse um filme interminável, que, para piorar, passa em câmera lenta.
A memória só quer um álibi para maltratar. E aí você está passando numa loja e ouve uma música qualquer – qualquer uma ova! Ela lhe mostra logo que era a música de que ele ou ela gostava, que sempre cantarolava e tal. E aí você vai a um restaurante e percebe que a moça ao lado está comendo um frango... e a peçonhenta lhe mostra que era o prato que ele ou ela apreciava.
Mas ela escancara mesmo todo o seu baú de maldades é quando alguém comum aos dois, que você não via há muito, encontra-o e pergunta por ele ou ela. Parece que, nessa hora, a maldita estala os dedos, suspira fundo e repassa o filme em tela grande. Você tenta afastar as cenas, tenta não ver, finge naturalidade no famoso “tá por aí”, mas seu olho interno está de pálpebras bem abertas, nem pisca, obrigado a olhar todos os quadros, escolhidos a dedo. O amigo vai embora, você dá um jeito de se despedir da maneira mais alegre possível... mas já perdeu o dia, e quem sabe não perdeu o resto da semana.
É a memória que comanda você, não o coração. O coração é só uma bomba idiota. Tudo o que você é de mal, devote a ela. Em tempos de ultra-pós-modernidade, torço para que um dia ainda possamos simplesmente formatá-la quando convier e mandar os filmes ruins e dolorosos pro inferno.