A catarse cômica ou rir com desconhecidos
Alguém entra no buzão e conta uma piada ou deixa escapar alguma idiotice. Isso é o máximo que chego de rir com uma pessoa que mal conheço. Não qualquer desconhecido, mas alguém que compartilha conosco temporariamente a companhia. Pode ser o espaço no ônibus, na calçada, na fila do banco ou no cinema.
Existem vários desconhecidos que se avizinham de nós de forma tão rápida que nem nos tocamos mais. Afinal, essa é uma característica do viver na cidade: a multidão, essa massa impessoal onde todos estão juntos, mas separados em pensamento e direção.
Na última quinta participei de uma experiência singular. Numa sessão de cinema senti algo incomum. A sensação de que estava rindo em conjunto. Calma, explico: o riso é algo tanto individual (quem nunca riu sozinho depois de se lembrar de uma piada) como social. Quando se ri coletivamente você está criando um vínculo momentâneo com as pessoas ao seu redor: por um momento partilham do mesmo senso de humor que ti.
Há muitas formas de se rir. Ou o riso forçado, aquele que soltamos para não dar a impressão de que não entendemos a piada, ou o riso involuntário, esse danado que não conseguimos controlar. Ou seja, o riso também é influenciado por convenções: há o momento de rir e o momento de não rir.
Bem, isso não é novidade. Embora poucos sociólogos tenham se preocupado com o estudo do humor (detalhe: não estou querendo fazer aqui uma tese do riso coletivo, só estou relatando uma impressão), já é fato conhecido que o humor é também uma prática social. Quando os trabalhadores de uma gráfica francesa no século XVIII quase mijavam de rir ao matar os gatos da sua patroa isso fica mais explícito, como o trabalho de Robert Darnton demonstra pra gente.
Voltemos á sessão de cinema. Senti uma vibração incomum ali. Estávamos rindo. Até aí nenhuma novidade, afinal era uma comédia. O estranho é que estávamos rindo demais, quase desabando o cinema com nossas gargalhadas. Creio que os responsáveis por isso sejam dois motivos: primeiro, as gags eram muito rápidas, mas seguidas (mal acabava uma, outra vinha, prolongando o riso); em segundo lugar, se tratava de uma comédia de humor negro.
O escritor Bráulio Tavares em uma de suas crônicas, afirmava que a heresia ás vezes pode tomar um tom libertário. Pense num indivíduo que teve uma formação extremamente religiosa, onde a fé quase se torna opressora de sua personalidade, e você entenderá essa afirmação. O humor negro ás vezes pode ser revolucionário também. Lembremos que esta modalidade de humor mexe com tabus e feridas da nossa sociedade. E em tempos de "politicamente correto" dominando a opinião pública, piadas do tipo adquirem um caráter de rebeldia. No caso do filme em questão (era O Ditador, pronto, revelei!), em se tratando de humor não é aquela maravilha, aquela genialidade - apesar de ter achado a sacada final, no discurso do tirano, extremamente boa - , mas cumpre o que se propõe: fazer rir. Ou seja, é um filme competente. O que dá maior graça ao vídeo é que podemos rir aqui do que não podemos rir lá fora, na rua, por exemplo.
Quando se brinca com temas sagrados e estereótipos (e o pai deles, o preconceito) nos acometemos de duas sensações: a primeira, a consciência de que cruzamos a linha do permitido, e a segunda, de que isso de certa forma é libertador. A repreensão e o alívio, lado a lado.
Ou seja, creio que a maioria do pessoal presente ali estava ciente disso, daí essa sintonia, daí essas gargalhadas de "quebrar as costelas". O riso coletivo parece ser mais poderoso e a surpresa com experiências como essa - assistir á uma comédia no cinema ou a um show de stand up, enfim - atestam que elas estão ficando cada vez mais raras.