DAS PAIXÕES SAUDÁVEIS
Sempre afirmei que a paixão era o sentimento que mais aproximava o Homem dos demais animais, aqueles desprovidos de intelecto, de razão. O homem apaixonado vira literalmente um animal no sentido biológico do termo: ele não raciocina, ele age unicamente por instinto, com destaque, claro, para os instintos do universo sexual.
Mas me enganei. Percebi que não existe a paixão, mas sim as paixões. A paixão é, na verdade, duas paixões. Uma doentia, outra saudável. E enquanto a paixão doentia não permite divisão, pelo desejo do apaixonado de ser apenas um para a amada e de querer que ela, em igual medida, seja uma também para ele, só para ele, a paixão saudável pode multiplicar-se em várias outras menorzinhas, pois não carrega o mesmo instinto da posse que a outra.
Toda paixão que é movida pelo desejo do sexo é doentia. E todo mundo que já viveu uma paixão com sexo no meio (dê a essa palavrinha o sentido que quiser), se já conseguiu livrar-se dela, há de concordar comigo, ao menos lá no dentrinho... A paixão doentia não respeita horários, nem espaços, nem convenções sociais, religiosas, familiares, etárias ou qualquer outra que lhe apareça pelo caminho. Ela carrega a todas numa sanha destrutiva. O apaixonado só enxerga a amada e, como um tsunami (esse termo já virou metáfora), vai empurrando o que lhe trava o caminho para chegar ao seu alvo. Não é assim?
As paixões saudáveis, não. Estas são calmas, sem aquela sofreguidão própria dos que trazem a libido à flor da pele. São duradouras. E, sobretudo, respeitam todas as convenções que estão estabelecidas socialmente. As paixões saudáveis permitem-nos enxergar o outro em toda a sua plenitude, com os seus encantos e seus defeitos, não têm a visão turvada para algumas fealdades que os humanos carregamos e quase sempre tentamos ocultar.
As paixões saudáveis não têm uma razão específica para florescer. E seu surgimento pega carona nas famosas “admirações gratuitas”. As paixões saudáveis respeitam os outros, pois não os querem só para si. Não os querem nem para si, pois não nasceram com a anomalia da apropriação.
As paixões saudáveis se alimentam de pequenos gestos: uma conversa, um elogio, uma brincadeira, um aperto de mão, um afago, um toque, uma ajuda, um projeto conjunto, um pensamento, um mimo, um momento de companhia, uma oferta de qualquer coisa, uma consideração, uma lembrança, uma saudade. Não há, absolutamente, a necessidade de grandes demonstrações de sentimento, pela simples razão de que elas são apenas “bem-quereres despropositados”. As paixões saudáveis não querem possuir; querem, quando muito, compartilhar.
E talvez o fator mais importante: as paixões saudáveis são extremamente importantes para o nosso crescimento como seres humanos. Bem diferente daquela outra, que transforma os apaixonados em pulsão e reduz o que eles têm ainda de humano a resquícios de primatismo.