A BATIDA DA FACA E O PIO DO VIRA

“quel mazzulin di fiori

io voglio dare al mio

moretto...”

Querer comparar as facilidades que temos, hoje, para adquirir coisas

que fazem parte do nosso dia a dia, com os estabelecimentos que

existiam antigamente, seria o mesmo que igualar um Fusca a uma

Ferrari. Sem condições. Está certo que os tempos são outros, a

população aumentou em escala exponencial, a cidade cresceu

desmesuradamente. Contrastando com a frieza com que somos

tratados hoje (você tem cartão?), outrora tínhamos o nome, não o

dinheiro de plástico. Eu era o vizinho, o amigo, não o cliente. Enfim,

havia tanto romantismo na relação vendedor/comprador, que nem de

comercial poderia ela ser chamada, dada a afetividade da mesma.

Onde comprávamos os alimentos, os materiais de limpeza, por

exemplo? Nas chamadas vendas, tradicionais vendedoras de secos e

molhados. Ali havia de tudo!

“Seu” Carmine Rossini era um italiano desses bem gordos. Tenho-o,

ainda, em minha memória. Rosto vermelho, sempre suado, usando

aqueles aventais só de cobrir a barriga (e que barriga!), vozeirão de

tenor, atrás do balcão de madeira envernizada, com tampo de

mármore branco. Em cima deste, ficavam certas bebidas em vidro,

como a pinga com cambuci, a com uva passa, chamada “passarela”,

que eram servidas através de conchas. Também, recipientes com

amendoim japonês, balas, doces de abóbora, de batata, da antiga

marca Confiança. Na frente do balcão, restavam abertos os sacos de

arroz, feijão, batata, quirera, milho e outros alimentos tradicionais.

Pendurados, os embutidos, mortadela, linguiça, toucinho defumado.

De resto, prateleiras em todas as paredes, com latarias, produtos de

limpeza, bebidas, e artigos das mais diversas espécies. Assim, de

modo geral, era o armazém do Rossini. Era auxiliado pelo filho

Minguinho, hoje advogado, as filhas Nelsinha e Mila, e pela mulher,

Dona Matilde. Minha família comprava tudo ali. Ficava na rua Agenor

de Camargo, conhecida como rua dos Italianos.

“Seu” Guerino Torazza já era totalmente ao contrário, em termos de

presença. Velho, baixinho, magro, também com o rosto

vermelho...provavelmente por causa do vinho. Sempre de boina

colocada de lado. “Era o vino, era vino, era o vino, a coisa que io mai

adurava...” assim cantava, num portuliano muito engraçado. As

características da venda dele eram iguais às do Rossini. Ficava na

esquina da rua Cel. Alfredo Flaquer com Cel. Ortiz. Um pouco longe

de meu reduto. Só a conhecia porque, perto, havia uma bicicletaria

onde eu levava as bolas de “capotão” para remendo, quando

furavam. Então, quando sobravam umas moedinhas, gastava-as ali,

no armazém. O Guerino tinha, na gaiola, um pássaro preto, também

conhecido como vira bosta, de canto bem estridente. O velhinho tinha

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uma precisão extraordinária, em fatiar a mortadela. Batia, antes, a

faca no balcão, e cortava o embutido. Nesse instante, sempre, com

muita sincronia, a ave respondia com uma cantada. Cada fatia

cortada, era o “pleim” da faca e, logo, o “poing” do vira...! Era

folclórico.

Esses estabelecimentos, todos eles, costumavam ter seus habituês

(meu pai era um deles, do Rossini), moradores da redondeza que,

todos os dias, no final da tarde, iam beber, geralmente, o vinho da

casa, ou tomar o aperitivo. Possuíam, também, um quartinho nos

fundos, onde ficavam as barricas de vinho, e uma mesa, na qual se

acomodavam os fregueses, para, além da bebida, jogar certos jogos

de baralho, de origem italiana, como a scoppa 15, a sueca, e a

tradicional morra, jogo de acertar o número de dedos mostrados.

As duas vendinhas foram as que mais marcaram presença em minha

vida.

Além delas, sabia da existência da do Guazzeli, pai do Osvaldinho

Cabeleireiro, na rua Regente Feijó, perto da sede do Flor do Mar F.C.,

possuidora de canchas de bochas. Aliás, essa uma característica da

maioria das vendinhas daquela época. Havia, também, a do Brait, no

Largo da Matriz, a do Zeca, antes na Cel. Alfredo Flaquer, depois, na

avenida João Ramalho, a do Bártoli, na Senador Flaquer, a do

Capochim, na Gertrudes de Lima, a do Bassani, pai do Rui e do Élvio,

na rua dos Capuchinhos, e muitas outras. Todas com suas histórias.

Não vou dizer que, naquela época, as coisas eram melhores. Porém,

as vendinhas faziam parte da vida da comunidade ao seu redor, com

uma presença muito sensível. Ninguém comprava com dinheiro. Tudo

marcado na caderneta, para ser pago no fim do mês. E, ainda, no ato

do pagamento, o freguês recebia, como presente, biscoitos, lata de

doce, ou qualquer outra mercadoria, em agradecimento. Na verdade,

os compromissos eram cumpridos. A honestidade imperava. O nome,

preservado! Com muita honra!

Aristeu Fatal
Enviado por Aristeu Fatal em 08/09/2012
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