ERA UMA VEZ O ACASO

Ele estava pensativo, calado, cansado, presente fisicamente ali no supermercado, ao lado da esposa e da sogra, mas distante no pensamento, quase alheio a tudo. Preocupava-se com o saldo devedor do cheque especial, fazia mil planos para ganhar um dinheirinho extra e se deixava levar pelo desconforto de não encontrar nenhuma solução viável para equacionar esse assunto. Fizeram as compras necessárias utilizando novamente o cartão de crédito e isso o angustiava ainda mais, embora tivessem comprado somente o básico, o rotineiro. Passou o cartão na máquina de leitura do caixa, empacotou os itens comprados e ficou à espera que a sogra fizesse o mesmo com sua compra.

Saíram, a sogra dele informou que precisava passar pelo terminal de caixa eletrônico para fazer um pequeno saque em sua conta corrente, e lá se foram os três para o local onde as máquinas de dinheiro se encontravam. Eram três, cada uma propriedade de instituições financeiras diferentes. Havia somente um sujeito no terminal da extremidade esquerda, que logo terminou sua trasação e se foi. A sogra aproximou-se do terminal do meio, ao lado da filha, e retirou o cartão de crédito de sua bolsa. Ele ficou de costas para o da extremidade esquerda, ainda há pouco utilizado pelo homem que ele viu de relance sem qualquer interesse. Continuava refletindo sobre sua situação nada confortável, ouvindo a voz da sogra conversando em voz moderada com sua esposa.

Súbito, como se a despertá-lo lentamente dum sono profundo, escutou um ruído a princípio desconhecido, mas aos poucos, clareada a mente pelo acordar dos pensamentos, percebeu de onde vinha o som bastante conhecido de sua memória: o zumbido do terminal no instante exato em que seleciona as notas para deixar à mostra na abertura da saída do dinheiro sacado. Olhou surpreso para o terminal, assustado até por seu repentino funcionamento inesperado, sem mãos humanas operando-o, fato talvez ocasionado por ter surgido uma pane qualquer, algum defeito, algo assim realmente inexplicável. Ele deitou o olhar atônito para a máquina, que demorava em sua autocontagem de dinheiro ou coisa que o valha, olhou também em derredor sem saber que atitude deveria tomar e voltou a descansar os olhos novamente no terminal.

Então foi tomado de verdadeiro pânico, êxtase, fulgor, magia, estupor, angústia, um misto de emoções passando de sua alma ao coração, dos olhos ao pulmão, acelerando-lhe a respiração, fazendo-o suar frio, tremer, passar mal. Pelo que viu a seguir, quando o terminal do banco vomitou pela abertura exígua da saída de dinheiro um monte de cédulas de cem reais, que lá ficaram presas para que não caíssem ao chão, à espera de mãos para retirá-las. Dominado pelo intenso conflito de emoções à flor da pele, ele fitou todos os lados, não viu ninguém por perto, o dinheiro sorrindo cheio de promessas para ele, e então, sem hesitar, pegou o montante saído da máquina, contou disfarçadamente pondo-o em seguida no bolso. Novecentos e cinquenta reais. Ninguém viu o que se passou, nem sua sogra, nem sua esposa.

Remexeu-se trêmulo, em conflito consigo mesmo, com seus valores, seus temores e as possibilidades apresentadas pela quantia simplesmente descida do céu para seu bolso, doce e terna dádiva. Ninguém viu nada, foi tudo tão rápido, a máquina mesmo, de livre e espontânea vontade, deu para ele, não foi produto de nenhuma ação dele. Contaria para a esposa? Melhor não, faria isso quando chegasse a sua casa. E festejariam, dançariam achando graça da vida, sorrindo felizes, batendo palmas para o destino, cantando desafinados porém alegres, zombando do tempo e mandando banana para o vento.

Contudo, o choque, a lembrança que não gostaria de ter, os olhos malditos da câmera do terminal pousados sobre ele no momento em que pegou o dinheiro. Olhos humanos não viram, apenas os sem vida da câmera do terminal. Então veio outro tiro à queima roupa em seu frenesi, em seu entusiasmo orgásmico, a enorme e impassível câmera reinando no teto do supermercado vendo e gravando tudo, sabendo de tudo nos mínimos detalhes. E mais outra, e outra, elas estavam por todos os cantos e lugares, o supermercado estava cheio delas. Naquele acontecimento ele era personagem principal, mocinho e bandido, polícia e ladrão. O pavor arrefeceu-lhe os ânimos, as pernas ficaram bambas, o semblante decaiu.

Ele foi ao terminal onde se encontravam a esposa e a sogra, esta já concluindo os procedimentos de saque e verificação de saldo, contou a ambas, em voz baixa, o acontecido e falou a respeito dos olhares imperturbáveis das câmeras por todos os lados. "Fique com o dinheiro!", disse a sogra. "Não, isso não!", objetou a esposa. "Não posso, tem mil câmeras me olhando e gravando!", completou ele. Sua esposa colocou a mão no bolso dele e sentiu a textura das cédulas de cem. Suspirou. "Vou falar com o gerente para descobrir de quem é esse dinheiro!", ele disse desanimado. "Fique com o dinheiro!", repetiu a sogra. "Mamãe, as câmeras viram tudo, ele precisa devolver o dinheiro ao verdadeiro dono!" , retrucou a esposa. "O gerente vai é ficar com esse dinheiro todo pra ele!", reforçou seu ponto de vista a sogra. "Não, eu só entrego ao dono!", falou ele numa voz agoniada.

O impasse entre eles demorou pouco, a despeito do desejo da sogra para ele apossar-se do dinheiro e dar uma parte para ela, não teve jeito, foram os três para a gerência e relataram a ocorrência. Ele pediu para ver as gravações de determinado período, o gerente atendeu, colocaram as gravações no computador e o filme da verdade começou a rodar depois de algum tempo passando cenas que nada tinham a ver com o incidente. Assistiram à chegada dos três aos terminais, o sujeito usando camisa escura, calça jeans, um boné na cabeça...era ele, devia ser ele quem estivera sacando antes deles chegarem. Seria o dono dos novecentos e cinquenta reais? Estaria ainda no supermercado? E se não estivesse, esse montante deveria ser entregue ao gerente do supermercado? "Só vamos entregar o dinheiro a quem for o dono de verdade", afirmou a sogra sob o silêncio dos demais e os olhares fulminantes do genro.

Viram a gravação duas vezes, estando todos quase certos de que o sujeito de boné talvez fosse o dono da quantia sacada. Ou seria um problema técnico no terminal? Nesse dúvida, o dinheiro ainda guardado no bolso dele, saíram da gerência em silêncio, não sabiam como resolver a delicada questão, e são assim todas que envolvem dinheiro. Foi quando a mão do destino resolveu dar uma mãozinha à encrenca, porque de repente o cara de boné e roupas acima descritas surgiu na visão da caravana da dúvida. "É ele!", gritou a sogra, e saíram todos apressados na direção do indivíduo, que acabava de pagar suas compras no caixa. Chamaram-no, perguntaram-lhe o nome e indagaram, tensos, se ele houvera estado em algum dos terminais de bancos do supermercado. "Sim, estive, tentei sacar mas o dinheiro não saiu. Esperei um pouco e nada. Então fui embora achando que não tinha dado certo", replicou. "Quando você tentou sacar?", perguntou aquele cujo montante saído da máquina estava guardado em seu bolso. "Novecentos e cinquenta reais. Mas não consegui e resolvi desistir. Por que?"

Gilbamar de Oliveira Bezerra
Enviado por Gilbamar de Oliveira Bezerra em 08/09/2012
Reeditado em 13/09/2012
Código do texto: T3871019
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