Herança do coronelismo

Porque são filhos, sobrinhos, netos, bisnetos ou apenas conterrâneos de antigos coronéis, muitos homens herdaram nos costumes e no sangue o gosto ruim do poder, da insídia, do machismo e da rudeza.

Quando se fala de coronelismo, logo se pensa no nordeste do Brasil. Entretanto, cada estado teve seu tipo de chefe, a exemplo, dos barões do café e do aço. Outros países, idem. Assim, a Itália gerou a Máfia, a Cosa Nostra; e os Estados Unidos da América do Norte são os pais do gangsterismo e do bandido do far-West. Como dizia um meu ex-professor, “onde tem gente, tem safadeza”.

O poder da arte cinematográfica celebrizou vários tipos de fora-da-lei. De tão bem caracterizados por atores de talento, bandidos se tornaram homens atraentes, charmosos, irresistíveis. De exemplo temos Al Capone (Robert de Niro), Michael Corleone (Al Pacino), Don Vito (Marlon Brando).

“O gênero gângster cinematográfico é um fenômeno recente que nasceu junto com a era dourada do cinema e a ascensão artística industrial americana. Suas raízes estão fortemente calcadas nos romances literários populares que, quando re-interpretados pelo cinema, são responsáveis por agregar e ambientalizar uma concepção contemporânea às sucessivas crises sociais. Dentro do cinema essas narrativas acabaram sendo vistas como se tivessem nascido com o invento da sétima arte e não re-elaboradas dentro das telas. A grande maioria dos filmes de gângster tinha suas histórias baseadas em obras literárias” (Silva, 2008, p. 43).

É em outro tipo de tela que o brasileiro acompanha o romance Gabriela: cravo e canela, do baiano Jorge Amado, escritor que já foi cortado das leituras de jovens e das salas de aula. Lia-se Amado na clandestinidade imposta pela “sociedade sadia”. “Sociedade sadia” está entre aspas porque eu jamais diria tal asneira, e acrescento que me causou nojo quando uma conhecida pronunciou a expressão durante uma reunião. Dizia-o com o peito cheio e orgulhoso por se julgar parte desse saudável ambiente. Digo eu de cá, “quem não te conhece, que te compre”. Foi essa sociedade safada e dissimulada que proibiu aos estudantes a leitura do escritor que hoje aprova na televisão.

Preciso falar dos coroneis e sobre essas personalidades dar a palavra a outros. Estou vivamente impressionada com o desempenho dos artistas brasileiros que estão vestindo a figura do coronel baiano. Desempenhos como os de José Wilker (Coronel Jesuíno), Antônio Fagundes (Coronel Ramiro Bastos), Ary Fontoura (Coronel Coriolano), Chico Diaz (Coronel Melk Tavares), Nelson Xavier (Coronel Altino Brandão), Genésio de Barros (Coronel Amâncio Leal) não deixam a desejar aos das grandes produções da Sétima Arte.

Os rasgos de verossimilhança alcançados pelos atores conseguem fazer rir, chorar, amar e odiar os coroneis. Todos os sentimentos assomam, especialmente à alma feminina colocada frente à tirania do coronel, ao seu poder de decidir pelos outros, de matar, de esfolar, de expulsar da cidade, de desgraçar a vida de qualquer pessoa. Até chego a pensar que a juventude há de achar nas cenas um bom motivo pra rir.

A literatura é espelho da realidade. A respeito do coronelismo, diz Carvalho (acesso em setembro de 2012, p. 1):

“No princípio, era o ‘coronel’. Entre aspas, porque não era chamado assim. Era o homem-bom, o chefe, o patriarca, o mandão, o grande senhor de terras e de escravos, base da organização social da colônia. Alguns historiadores o chamaram até de senhor feudal. Comandava vasto séquito que incluía a família, a parentela, os escravos, os agregados, os capangas. Todos dependiam dele, de seu poder, de seu dinheiro, de sua proteção. Controlava a terra, o trabalho, a política, a polícia e a justiça. Alguns isolavam-se no interior comandando estados à parte. A maioria, no entanto, desde o início vinculava-se à economia exportadora e à administração colonial. O poder colonial não tinha braços suficientes para administrar e delegava aos chefes locais tarefas de governo ou simplesmente deixava que mandassem como bem entendessem”.

E, quanto à herança deixada pelos coroneis do antigo Nordeste, Fernando de Almeida presta um testemunho de que ainda existe prefeito se comportando como os que dispuseram de tais discutíveis patentes: “Um dia, tivemos que enfrentar um determinado coronel em Panelas. Insatisfeito com a nossa presença na cidade, o dito cujo rodeado de "capangas" exigia a nossa retirada do seu reduto”.

Passada a época do auge do coronelismo, deixo o tema em banho-maria e asseguro que os coroneis existem, só não usam mais o terno de linho, o chapeu e o cavalo.

REFERÊNCIAS

http://www.unimar.br/pos/trabalhos/arquivos/876EA00EFC63608E9966967EAB6630EA.pdf

http://www.eficiencianews.com.br/index/noticias/cat-/id-1496/infelizmente__mas_ainda_existe_prefeito_que_pousa_de_coronel_a_moda_antiga.

http://www.ppghis.historia.ufrj.br/media/carvalho_metamorfoses_coronel.pdf