UMA CENA EM PARIS

O cenário é Paris, com suas luzes feéricas, a Torre Eiffel, o Rio Sena, o Museu do Louvre, o Arco do Triunfo e mil outras belezas mais para contemplar e sonhar ao lado de alguém a quem se tem muito amor. O local do ocorrido é um hotel nas proximidades do Arco do Triunfo, a poucos metros desse monumento tão representativo para os franceses, o momento do pitoresco fato é um frio amanhecer típico da primavera européia, os hóspedes chegando para o café da manhã e se acomodando no pequenino espaço já cheio de baguetes, geléias, ovos, queijos variados, sucos, café, leite e outras iguarias.

O local destinado ao desjejum do hotel em questão é deveras diminuto, e quando nele adentramos muitos hóspedes faziam sua refeição matinal, saíam uns, entravam outros, tudo consoante acontecia diariamente, num movimento rotativo corriqueiro. Adentramos no ambiente e nos acomodamos em meio aos muitos em pleno ato de comer, e, por nossa vez, também nos servimos sob o olhar servil e sorridente da senhora que supervisionava a atividade. Todos conversavam animadamente a respeito de todos os assuntos possíveis, mormente no tocante ao romantismo emanando de Paris, à sua aura de magia e aos tantos passeios planejados para aquele dia que se iniciava. Gargalhadas, vozes altas, cumprimentos, abraços, tudo era só alegria e êxtase no novo dia parisiense.

Um casal jovem, ela loura, de estatura mediana, muito elegante, ele um pouco mais alto, moreno claro, cabelos negros como as noites escuras, meio espaúdo, chamou minha atenção. Algo um tanto anormal se passava com o jovem, fato que alarmava sua acompanhante cujas feições se mostravam atordoadas e temerosas. Ele estava com as mãos na boca e se mexia um tanto atormentado, agitado além da conta, parecendo envolto nalgum problema de grandes proporções, a mulher ao eu lado tentando ajudar também colocava sua mão na boca dele, angustiada e muito preocupada. Naquele instante, sem saber bem o que estava havendo com aquele casal, que distoava da alegria reinante e se mostrava quase bizarro ante o comportamento incomum, permaneci com o olhar sobre eles na tentativa de descobrir a razão de tanta agitação.

Em dado momento, e então eu avisara a minha esposa sobre a ocorrência e ela me acompanhava espionando a cena nada usual, a mão da mulher loura virou a cabeça do rapaz e nós vimos, surpresos, o motivo daquele desespero. Embora parecesse cômico e fosse causa para rir da situação, e eu poderia ter rido muito com minha esposa, tive muita pena do sujeito e gostaria de ajudar de algum modo, mas me contive e continuei somente observando para ver como o grave problema seria solucionado. É que, pelo relance da visão obtida, notei que a prótese dentária do cara, mais especificamente a extremidade pontuda que se prende ao dente e é afiada, se enterrara em sua língua, impossível saber como isso se deu, e os dois, apavorados, em especial a vítima, buscavam um jeito cuidadoso de retira-la e por fim ao sofrimento dele. Eu vi a hora a prótese se aprofundar ainda mais, tornando extrema a dificuldade de extrai-la sem algum ferimento sério.

Agora eu não atentava mais para meu café da manhã, prestando toda atenção ao martírio do jovem a poucos metros de mim. Tanto ele quanto a mulher loura, certamente sua namorada ou esposa, lutavam com afã procurando livra-lo do martírio, puxavam devagar, davam voltas lentas na prótese, levantavam, baixavam, tornavam a puxar, a cabeça dele ia e vinha, subia e descia, tudo em vão, nada resolvia. Não sei se os demais hóspedes também viram, provavelmente sim, todavia se mostravam distantes, indiferentes ou, talvez olhavam a cena com o rabo do olho. Percebi, no entanto, que o casal angustiado se esforçava para não dar muita bandeira quanto ao que atravessavam, queria muito ser discreto, algo quase impossível.

Nesse ínterim, claro, meu café esfriara, tanto era meu interesse no drama do casal. E foi com alívio, depois de muito tempo de amargura, que notei quando a loura, afinal, já suando e cansada, logrou arrancar a prótese dentária da língua de seu acompanhante. Este, aliviado, escondeu o rosto depois disso, recebeu a peça dela, tudo de forma discreta, mas eu vendo sem que eles soubessem, e recolocou-a no devido lugar, voltando a sorrir e voltando a comer como se nada tivesse acontecido. Não sei como nem por que, mas não vi sangue em sua boca, nem resquícios disso, só uns vermelhões em derredor de seus lábios, machucados pelas mãos que sofriam pressionando-os objetivando tirar a prótese da língua, no momento em que ele, virando-se para se certificar de não estar sendo observado, ajudou meu ângulo de visão para ver melhor. Terminou de tomar seu desjejum juntamente com a loura e, sorrindo amarelo, disfarçando, saiu para as ruas de Paris.

Gilbamar de Oliveira Bezerra
Enviado por Gilbamar de Oliveira Bezerra em 05/09/2012
Código do texto: T3866060
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