A lira de Heitor
Conta-se que Nero tocava lira enquanto Roma pegava fogo. Mas isso não tem nada a ver com essa crônica. Sequer sei porque cargas d'água, fiz essa tosca associação. Mas com certeza, daí veio o título.
Antes da sua terceirização, a aplicação de provas nos concursos do Banco do Brasil era de responsabilidade dos próprios funcionários domiciliados na cidade do certame. Não raro, todavia, e em decorrência do aumento da demanda pelas vagas oferecidas, eram convocados funcionários de outras cidades mais próximas ou economicamente mais viáveis. Foi nessas circunstâncias que aconteceu o que narro abaixo.
No ínicio dos anos 1990 fomos convocados para trabalhar na realização de provas no concurso que se realizaria em Manaus. Tudo acertado, pessoas escolhidas, passagens compradas, hotéis contratados... só faltava a nossa parte, ou seja, a dolorosa missão de ir para o maior centro comercial internacional do país, a Zona Franca de Manaus. E fomos! Mas não sem antes sermos protagonistas da hilariante historia que agora, de verdade, começa!
Pois bem, na manhã do sábado anterior ao domingo no qual seriam realizadas as provas, nosso amigo Heitor, que era chefe do Órgão onde trabalhávamos, resolveu iniciar sua própria festinha particular, a despeito do fato de que deveria estar no aeroporto no máximo às 23 horas do mesmo dia. Tomou umas aqui, outras acolá... aí fez uma pequena pausa para pegar a mala e as passagens em casa. Mas muito pequena mesmo, essa pausa... E logo em seguida estava de volta à sua cerveja, desta vez, justamente no restaurante que escolhemos para almoçar e acertar os detalhes finais da viagem. "Consensual" era um misto de restaurante e casa noturna e por isso emendava os expedientes, além de uma comida muito boa. Ítem este que, naquele dia, não estava no foco de nosso amigo. Detalhes acetados e logo após o dito almoço fomos nos "arrumar", exceto Heitor que bebendo continuou. Mas nada ainda preocupava, pois nenhuma bebida lhe fazia desmarcar ou se atrasar em seus compromissos, como ele próprio propalava.
Já no Aeroporto, apesar do aglomerado, tudo ia se resolvendo apesar da ausência do amigo Heitor. Marilaine, a segunda pessoa na hierarquia da equipe de tanta eficiência, sequer nos permitia sentir a falta dele. Até mesmo porque tínhamos muito mais outras coisas para nos preocuparmos. Mas Heitor estava com todas as rotinas e fluxogramas das atividades a serem executadas na manha seguinte. E isso sim era motivo de preocupação para nossa sub-chefe. Acabou-se a calmaria. Tempestade a vista. Alguém se lembrou que o coitado houvera ficado no restaurante festivo. Nas pouquíssimas ligações completadas, nada se ouvia naquela casa, pois o som ao vivo era de volume intenso O tempo urgia... apesar disso o tempo urgia.
Em dado momento um taxista se aproximou do grupo e pediu para que fôssemos buscar nosso colega lá no táxi dele. "Ele está passando mal?" perguntou alguém. "Não! Ele apenas não quer sair e diz que quer voltar pro bar"... Respondeu o rapaz. "E olha...", continuou, "A sorte dele é que esperto como sou, quando fui deixa ele no restaurante hoje pela manha, vi que ele estava com uma mala. Ai perguntei a hora do voo. Mas não foi facil não, viu? Achar ele até que foi fácil, na verdade. Difícil foi primeiro convencer ele a vir pra cá. Depois foi achar essa mala ali (apontando pra mala do Heitor) que já estava lá junto, quer dizer, amontoada com as coisas dos músicos".
Pagamos o rapaz e trouxemos o bebum para o saguão do aeroporto a tempo, felizmente, de fazer o chek-in.
Quando tudo estava restabelecido e caminhando para a normalidade eis que Marilaine vem desesperada dando conta de nova tragédia. "Heitor! Esses dois coleguinhas aqui, nunca viajaram de avião... e advinha o que aconteceu?" Calado ficou nosso amigo. "Pois bem", continuou "Nossos coleguinhas não fizeram o chek-in e agora o supervisor já abriu a fila de espera e não quer abrir mão de jeito nenhum. Já falei até com o chefe dele. Gostaria que você fosse até lá e explicasse do que se trata. Quem sabe ele não seja mais flexível com você..." Silêncio absoluto apesar do intenso olhar que Heitor dirigia a Marilaine. "É Heitor", interviu nossa colega Franciná, "Talvez com você, que é o chefe e é homem, quem sabe..." O silêncio continuava... Num gesto de desespero, Marilaine, bem a seu modo, deu um grito: "Heitor!" Suficiente para assustar nosso chefe. "Você pode fazer isso por nós, pelo menos?" concluiu. Nesse momento Heitor endireitou a cabeça, passou a mão dos olhos, depois nos cabelos e levantou-se lentamente, como se iniciasse uma atitude digna do momento. Parou alguns segundos e sentou-se novamente... Mais uma vez passou a mão nos olhos, quase esfregando, agora. Lentamente foi olhando no rosto de cada um de nós, como se estivesse querendo compreender nossos pensamentos. E finalmente disparou: "Onde é que estamos, mesmo, heim?"