Ernesto

Ernesto era lento de nascença. Os mais maldosos o chamariam de lerdo, diriam que “esse aí é uma lesma mesmo”, mas não era nada disso o Ernesto. Alguns são mancos, outros altos, alguns gordos e ainda há aqueles carecas, o Ernesto era lento. Talvez por isso Ernesto nunca tenha se encaixado direito no mundo. Numa analogia simples, era como se o mundo fosse rápido como uma corrida de Fórmula 1 e Ernesto se chamasse Rubens.

Ernesto, coitado, nunca ficou muito tempo num emprego. “Desculpe, você não tem conseguido acompanhar o ritmo da empresa, quem sabe numa outra, não é mesmo?” era o que geralmente diziam. Mas, longe de ficar triste, Ernesto até sofria, sofria de apatia, pois custava a entender o que tinha acontecido. Era lento na matemática, nunca conseguiu calcular ao certo de quantos empregos o haviam chutado. Certo dia a sorte sorriu, se é que podemos chamar isso de sorte, e ofereceram-lhe um trabalho de limpador de livros numa biblioteca qualquer. Limpar livros era tarefa fácil, mas se tratando de Ernesto os livros estavam quase sempre empoeirados. Desse emprego nunca foi demitido, sabe-se lá por quê.

Na fila do banco, em que nunca, em hipótese alguma, respeita-se a lei dos quinze minutos, Ernesto era o único que parecia não se importar com a demora. Quem via de longe era capaz de jurar que se deliciava na fila, que em silêncio rezava para que nunca chegasse a sua vez. E quando chegava a vez de Ernesto, que desastre! Além de tudo era tímido e nem na sua lentidão costumeira conseguia falar com a moça bonita que dizia desdenhosa mastigando um chiclete de tutti frutti “e então, o que vai ser, senhor?”. Mas Ernesto nunca sabia o que ia ser. As pessoas na fila reclamavam, olhavam feio, xingavam até, mas logo deixavam pra lá, “o rapaz deve ter alguma problema, no mínimo é doente da cabeça”.

Era lento mesmo o Ernesto. Tão lento que quando o computador surgiu indignou-se logo. Logo no seu ritmo, claro. Recusava-se a usar aquele troço tão rápido. E a internet então? Deus, que coisa horrível enviar e-mails! Onde iria parar o mundo assim? O que havia acontecido com a vida contemplativa? Ernesto sentia vontade de chorar, mas quando as lágrimas finalmente chegavam aos olhos, chorava apenas por chorar, pois demoravam tanto que a vontade sempre já havia passado. Nunca abrira mão de enviar cartas manuscritas. Longe de ser um ato de romantismo, era apenas seu jeito de viver.

Apesar da lentidão que nasceu consigo, Ernesto era culto, ou pelo menos fazia o possível para ser. Evitava os filmes de ação, com suas correrias e explosões a cada dois segundos. Nunca assistia suspenses. Bastava piscar os olhos para perder um detalhe importante, como a cor da camisa da mocinha na primeira cena, que influenciava diretamente a motivação do serial killer revelada apenas no final do filme. Não, era muito para Ernesto. Adorava o cinema francês, estático, entediante, em que nada acontecia. O filme chegava ao fim após uma eternidade, mesmo que só durasse 30 minutos.

“A vida é como o cinema francês”, dizia Ernesto. Ou pelo menos era o que pensava dizer se alguém um dia o perguntasse. Ninguém nunca perguntou. Para Ernesto, a vida transcorria sem muita novidade, nunca percebeu as mudanças à sua volta; inclusive as mudanças que operavam-se em seu próprio rosto eram alheias. Foi envelhecendo sem perceber e, sem perceber, um dia morreu. Creio que não tenha percebido até hoje, tamanha sua lentidão. Talvez venha a perceber dentro de quinze ou vinte anos, quando seu corpo estiver totalmente decomposto e só restarem os ossos despidos de pele, morrendo de frio debaixo de sete palmos de terra. E quando acontecer, que susto será para Ernesto! Morto há tanto tempo e não percebera, como pode? “A vida é como o cinema francês”, dirá então embasbacado e seguirá vagando sem rumo, vivendo a morte assim como viveu a vida. Ah!, como é lento o Ernesto.